Título: MEDO E LIBERDADE NA INTERNET
Autor: PETER SINGER
Fonte: O Globo, 29/01/2006, Opiniao, p. 7

Soube-se no início deste mês que, a pedido do governo da China, a Microsoft fechou o website de um blogger chinês que era mantido por um serviço da empresa chamado MSN Spaces. O blogger, Zhao Jing, falava de uma greve de jornalistas no jornal ¿Beijing News¿ depois da demissão do seu editor, de temperamento independente.

A medida da Microsoft levanta uma questão-chave: a internet pode realmente ser uma força a favor da liberdade, que governos repressores não podem controlar tão facilmente como controlam jornais, rádio e televisão? Ironicamente, o fundador e presidente da Microsoft, Bill Gates, é um defensor entusiástico desta visão. Ainda em outubro último disse que ¿não há maneira de, em termos gerais, reprimir a informação hoje em dia, e acho que esse é um progresso maravilhoso, que deve animar a todos... Esta é uma mídia de total abertura e total liberdade, e é isso que a torna tão especial.¿

E, no entanto, a Microsoft está ajudando as autoridades chinesas a reprimir informações. Uma porta-voz da empresa disse que a Microsoft bloqueou ¿muitos sites¿ na China, e já se sabe há meses que a ferramenta de blogs na China filtra palavras como ¿democracia¿ e ¿direitos humanos¿ em títulos de blog.

A empresa se defende dizendo que precisa ¿cumprir as leis locais e globais¿. Mas os sites da MSN Spaces são mantidos em servidores nos Estados Unidos. As leis locais relevantes deveriam ser, portanto, as dos EUA, que não são violadas pela discussão de Zhao Jing sobre a greve de jornalistas em Pequim. Nem há leis globais que impeçam o povo chinês de discutir acontecimentos que seu governo prefere que não se discuta. O ¿New York Times¿, por exemplo, tem liberdade para publicar informações sobre a greve, embora opere um website que pode ser lido por qualquer um com livre acesso à internet. Se o governo chinês não quer que seus cidadãos leiam um jornal estrangeiro, então que decidam como bloquear o acesso a ele. Isso não é obrigação do próprio jornal.

De forma que a defesa da Microsoft não faz sentido. Podemos apenas imaginar qual é a verdadeira razão pela qual ela fechou o site, mas o medo de que seus interesses comerciais na China fossem afetados parece ter sido um fator importante.

Por certo que uma empresa pode e deve impor limites ao uso de seus serviços. A posição extremada ¿ que haja completa liberdade de expressão ¿ não se sustenta em face de exemplos desconfortáveis. Segundo Gates, a Microsoft pode impedir o uso de seus serviços para divulgar instruções sobre a fabricação de bombas nucleares, para enviar propaganda nazista à Alemanha, onde isso é ilegal, e para difundir pornografia infantil.

Mas esses são exemplos relevantes? Na sua defesa clássica da liberdade de expressão, ¿On Liberty¿, John Stuart Mill argumentou que a razão mais importante é promover competição entre as idéias mais distintas, e que o debate sem restrições é a melhor forma de testá-las. Se o governo protege as idéias da crítica, torna-as dogma rígido e sem vida, sejam ou não verdadeiras.

Se concordamos com Mill, então só um dos exemplos de Gates cai na categoria de expressão que deve ser protegida. Receita para fazer bomba nuclear é técnica, não idéia. E pornografia infantil também não é expressão de idéias. Podemos, portanto, restringir as duas sem contrariar a posição de Mill. (Já um ensaio dizendo que não há nada de errado em adultos terem interesse sexual em crianças e que essa conduta deve ser permitida exprime idéias, e, portanto, não deve ser censurado, por mais repulsivas que consideremos essas idéias.)

O mais difícil dos três exemplos de Gates é o da propaganda nazista. É fácil compreender a proibição alemã. Vários países proíbem a incitação ao ódio racial, o que pode ser justificado, consistentemente com a defesa da liberdade de Mill, se essas leis realmente focalizam unicamente a incitação ao ódio, e não tentam suprimir argumentos que se dirijam à capacidade intelectual das pessoas.

Um defensor da supressão de idéias nazistas pode sustentar que elas já tentaram, e fracassaram da maneira mais horrenda, produzir uma sociedade melhor. No entanto, o melhor sinal possível de que a Alemanha superou seu passado nazista seria o de que ela focalizasse suas leis especificamente na incitação ao ódio racial, e não unicamente no nazismo.

Em qualquer caso, o ataque da China à informação e à discussão de acontecimentos naquele país não é supressão de uma ideologia política desacreditada, mas do debate aberto e informado. Se Bill Gates acredita mesmo que a internet deve ser uma força libertadora, deve cuidar que a Microsoft não faça o trabalho sujo do governo chinês.

PETER SINGER é professor de bioética na Universidade de Princeton. © Project Syndicate.

João Ubaldo Ribeiro volta a escrever neste espaço em fevereiro.