Título: A FÁBULA DO PRESIDENTE EMPREENDEDOR, UMA INSPIRAÇÃO QUE JAMAIS SE REPETIRÁ
Autor: Aydano André Motta e Chico Otavio
Fonte: O Globo, 29/01/2006, O País, p. 15

JK aproveitou as oportunidades do cenário externo pós-guerra e avançou na industrialização

A fábula do presidente empreendedor, sorridente, que inundou a alma brasileira de otimismo (e semeia suspiros em sucessores como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva) é um fato histórico único, de um específico momento no tempo ¿ e que não deverá se repetir. Por melhores que sejam as intenções do sonhador, ninguém será Juscelino Kubitschek novamente, ensinam pesquisadores da era que materializou o Brasil contemporâneo. Nem ele mesmo seria capaz.

Há 50 anos, quando tomou posse (31 de janeiro de 1956), Juscelino soube explorar as oportunidades do cenário externo do pós-guerra e avançar no modelo industrial iniciado por Getúlio Vargas. O ex-ministro Celso Lafer, autor de uma monografia sobre o Plano de Metas de JK, disse que Juscelino aproveitou a leva do que se poderia chamar de primeira globalização pós-Segunda Guerra Mundial, que caracterizou a segunda metade dos anos 50 com a recuperação européia e japonesa.

Complemento da opção de Vargas

A cientista política Maria Antonieta Leopoldi, da UFF, entende que JK foi o complemento perfeito à opção pela industrialização de Vargas.

¿ O modelo desenvolvimentista durou no Brasil de 1930 a 1980. Os governantes se encaixaram à perfeição, sem ruptura, até Collor. Juscelino, ao criar a Cemig e Furnas, complementou a infra-estrutura necessária para o Brasil grande dos militares. Era uma lógica, um pensamento dominante ¿- ensina ela.

Maria Antonieta lembra que, nos anos 50, os industriais eram os interlocutores, não o mercado financeiro. Ela não tem dúvida de que Juscelino enfrentaria dificuldades talvez invencíveis, para repetir hoje o governo desenvolvimentista. Lafer pensa de outra forma:

¿ Como o Brasil e o mundo eram diferentes, as soluções do seu tempo não são as do nosso. Mas não há dúvida que JK saberia combinar hoje democracia e empreendedorismo. Em seu tempo, ele soube inspirar confiança nos projetos de infra-estrutura e de aprofundamento do perfil industrial do país, um componente básico da identidade do seu Plano de Metas. Lidou criativamente com as limitações à ação do Estado e com o que hoje se chama o risco-Brasil.

A professora da UFF ressalta que JK, além de democrata radical, tinha como qualidade o entendimento do que era preciso fazer para mudar o Brasil de patamar. Não havia, também, o combate obsessivo à inflação, que hoje justifica qualquer sacrifício. Tampouco houve preocupação em reduzir a pobreza ou combater a desigualdade:

¿ Juscelino era um líder com o sentido da urgência. Tinha base parlamentar forte, mas barganhava com quem não o apoiava. Era totalmente pragmático no jogo político.

JK conduziu o governo com praticamente dois ministérios: o convencional e o dos grupos executivos e de trabalho, nos quais a política não interferia (não eram subordinados a pasta alguma). Este segundo administrou o Programa de Metas por meio de órgãos (como o BNDE, a Carteira de Câmbio do Banco do Brasil-Cacex) ou de grupos executivos (como o Geia, do setor automotivo).

¿ Foi uma criativa solução administrativa para lidar com o cerne da proposta de desenvolvimento de JK, que tinha seu fulcro irradiador no Programa de Metas e que permitiu a expansão do emprego e das possibilidades de consumo, além da elevação do poder aquisitivo do salário-mínimo ¿ disse Lafer.

Como garantir o apoio político a esse novo projeto de nação? Ao mesmo tempo em que renovou a estrutura administrativa, Juscelino não abriu mão do uso dos modelos tradicionais de política: o loteamento e a barganha. Como o acordo com o PTB, a quem entregou o Ministério do Trabalho e o da Agricultura.

Habilidade evitou CPI sobre Brasília

Essa base política evitou a abertura de uma CPI sobre a construção de Brasília. Em entrevista a historiadores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc), pouco antes de morrer em 1999, o ex-líder de JK na Câmara dos Deputados Abelardo Jurema se recordou que, na época, bastava a assinatura de 109 parlamentares (um terço da Câmara) para criar a CPI que pararia a construção. A UDN, que tinha 85 deputados, recolheu 108 assinaturas. ¿Trabalhando loucamente, consegui fazer voltar a situação anterior e vários retiraram as suas assinaturas. Juscelino achava que, se Brasília não fosse inaugurada em seu governo, jamais seria concluída¿, contou Jurema.

Dos 29 objetivos do Plano de Metas, só o plantio do trigo, então uma commodity que pressionava a balança comercial brasileira, não deu certo. O Brasil saldava seus compromissos no setor de maneira prosaica. Como pagar o salário, em cruzeiros, dos funcionários da embaixada americana. Assim, abatia a dívida em dólar empenhando moeda nacional.

O resto da industrialização foi realizado a preço alto. Juscelino se beneficiou da instrução 113 da Sumoc (que depois viraria o Banco Central), criada por Eugênio Gudin logo após o suicídio de Vargas, para atrair o capital estrangeiro. Os equipamentos industriais, isentos de impostos, entravam como se fossem moeda, capital investido. Foi um sucesso que trouxe, entre outras, as indústrias de automóveis, exigência americana referendada pelo Banco Mundial.

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