Título: OS UTOPISTAS
Autor: AUGUSTO MARZAGÃO
Fonte: O Globo, 30/01/2006, Opinião, p. 7

Com uma inusitada estridência a questão racial está freqüentando a pauta do debate nacional. De repente, o Brasil tende a perder a sua consagrada imagem de modelo de democracia multirracial.

O que vem ocorrendo é uma simplificação. A via-crúcis da população negra brasileira (pois ao caso também da população indígena) tem um começo muito fácil de identificar: o Brasil foi o último país organizado do mundo a abolir a escravatura e o fez deixando os antigos escravos na orfandade para as condições de sobrevivência da vida livre. Dessa reabilitação tardia e incompleta resultou uma herança de desigualdade social e humanística que até hoje produz reflexos graves. Nem por isso se pode dizer que passamos a viver num perverso regime de segregação racial, mas é indiscutível que os filhos da escravatura foram obrigados a enfrentar obstáculos especialmente difíceis e penosos.

Como definir a realidade predominante entre nós neste começo do século XXI? Comete-se uma falsidade de solar evidência na denúncia de que o quadro da discriminação racial só tem feito se agravar no Brasil. Houve tempo em que também se alardeava no exterior o extermínio programado da nossa comunidade indígena. Insiste-se enganosamente em proclamar que os nossos afro-descendentes, assim como as mulheres em geral, recebem no mercado de trabalho, mesmo exercendo funções exatamente iguais às da mão-de-obra branca, salários 30%, 40% menores. Sequer admitem que haja diferenças de qualificação profissional e de responsabilidades laborais ou funcionais nessa injusta diferenciação de tratamento. Se no serviço público, hoje todo fundado em concursos de acesso e em funções de vencimentos determinados, as individualizações de tratamento são de todo impraticáveis, no setor privado as discriminações grosseiras pela cor da pele esbarram em impedimentos legais e trabalhistas de crescente rigor. Muitos parecem esquecer que já não é de hoje a Lei Afonso Arinos, onde os crimes raciais estão devidamente capitulados, e são inafiançáveis, e torna qualquer transgressão muito fácil de denunciar, obtendo sempre repercussão clamorosa na imprensa.

As desigualdades no campo racial derivam de fatores estreitamente ligados ao desenvolvimento do país. Os entraves enfrentados pelos afro-descendentes têm raízes óbvias no substrato da pobreza e da educação formal. Esforços governamentais corretivos se fizeram então imperativos de onde tem resultado projetos como ¿Universidade para Todos¿ (assegurando bolsas integrais a estudantes carentes oriundos de escolas públicas) e do estabelecimento de cotas de estudantes negros para cursos universitários. Os utopistas da igualdade racial perfeita imaginam um quadro simétrico dentro do qual brancos e negros, no Brasil, constituam uma situação paritária em todas as manifestações da vida social. Mas só o decorrer do tempo e dos nossos avanços civilizatórios conseguirá produzir um resultado tão equilibrado e harmônico. Não há nada de preconceituoso em causa, é uma singela questão de realismo.

AUGUSTO MARZAGÃO é jornalista.