Título: Os hábitos por trás dos números
Autor:
Fonte: O Globo, 04/02/2006, Prosa & Verso, p. 2

Dado que aponta consumo de 1,8 livro por ano, per capita, é discutível

Apesar dos prêmios, a Expedição Vaga Lume ainda enfrenta ¿a tristeza¿ que é a dificuldade de arrumar patrocínio, diz Maria Teresa. Apesar do ceticismo que enfrentam na hora de captar recursos, ela não tem dúvida de que a idéia de que o brasileiro não gosta de ler se trata de um ¿mito¿.

¿ A coisa mais importante é que o brasileiro não tem acesso ao livro. Eu já vi muito noveleiro trocar a novela das oito para ficar grudado nos livros. Às vezes, são mais de 600 retiradas numa biblioteca. É impressionante. Em Santarém, foi preciso organizar filas com as crianças, que corriam para pegar os livros. Elas saem da aula e chegam a esperar uma hora para ter acesso à biblioteca. Num assentamento de sem-terra deixamos o acervo básico de 300 títulos e, no ano seguinte, quando voltamos, o número de obras tinha saltado para 1.300 ¿ conta Maria Teresa.

Despertar gosto pelas letras não é tarefa fácil

Nem sempre, entretanto, os resultados são assim promissores. Já houve comunidade em que, do acervo inicial de 300, um ano depois só restavam dois livros. Isso porque, para formar leitores, não basta dar livros às comunidades: é preciso despertar o gosto pelo livro, e nem sempre a tarefa é fácil.

¿ Para isso nós formamos mediadores de leitura e temos preferido trabalhar com agentes comunitários, em vez de professores, porque estes são transferidos com freqüência e o trabalho se perde. Uma parte considerável é analfabeta funcional, mas é uma gente guerreira. Há professores que nunca tiveram um livro e estudaram sem caderno. Depois de um tempo, leram várias vezes o mesmo livro e acabam pedindo obras mais complexas.

Calcular o número de livros disponíveis pelo de habitantes, portanto, pode ser uma armadilha perigosa, que não indica a verdade sobre a leitura no país. Mas o Brasil, em parte, ainda é refém da armadilha. Afinal, o índice de 1,8 de livro por habitante/ano resulta de uma divisão simples: a do total de pessoas escolarizadas (mais de três anos de estudo) e mais de 14 anos, pelo da produção anual de novas obras. Para se ter uma idéia, na França esse índice é de 7; nos EUA 5,1; na Inglaterra 4,9 e na Colômbia 2,4.

¿ É o tipo de conta burra que acaba formando mitos ¿ reconhece Felipe Lindoso, que esteve à frente da mais importante pesquisa sobre leitura no país, Retrato da Leitura, da qual se tirou o número de 1,8. ¿ É preciso sempre complementar esse índice com outras perguntas, sobre se a pessoa leu algum livro nos últimos três meses ou lê algo no momento.

O problema desse cálculo é que ele não leva em conta livros emprestados, adquiridos em sebos, pertencentes a bibliotecas ou mesmo da prateleira de casa. Mais grave, põe no mesmo saco os hábitos de leitura de analfabetos funcionais, numerosos no Brasil, e leitores completos. Para esses últimos, estima-se uma média de consumo de 5,5 livros por ano.

A Retrato da Leitura foi realizada há cinco anos e contém informações detalhadas, muitas delas ainda hoje inexploradas, afirma Lindoso. Primeira do gênero, nunca mais foi repetida, embora Galeno Amorim, presidente do Conselho Diretivo do Vivaleitura, projeto do Ministério da Cultura, afirme que se realizará outra em meados deste ano, igualmente abrangente. Nos últimos anos, o número de 1,8 foi tantas vezes repetido por políticos e entidades editoriais que chegou a adquirir uma aura cabalística, ironiza Jason Prado, diretor da ong Leia Brasil.

¿ É uma falácia afirmar que o brasileiro não gosta de ler. No entanto, há vícios de origem que dificultam a difusão da leitura no país. Um deles é o fato de as políticas para o livro no Brasil sempre terem sido traçadas por gente ligada ao meio editorial. As pessoas acham que é preciso vender livros para resolver a questão. As editoras sempre estiveram mais preocupadas com a venda do que com o incentivo à leitura. Se a solução fosse comprar livro, não teríamos mais problema algum. O enfoque tem sido mais mercadológico que social ¿ critica.

A Leia Brasil nasceu no início dos anos 90, inicialmente como um projeto da Petrobras, e hoje atua em diversas regiões com bibliotecas volantes montadas em caminhões; treinamento de professores; ações com contadores de histórias, escritores, atores; a realização de seminários, debates e eventos e a edição de publicações próprias.

¿ O terceiro setor surge devido à deficiência do governo em realizar políticas de leitura no país. A Política Nacional do Livro (que o governo planeja apresentar em março, na Bienal do Livro de São Paulo) parece maravilhosa, mas irrealizável. As políticas governamentais neste setor em geral duram pouco ¿ afirma o diretor da Leia Brasil.

A intenção do governo com a nova proposta de Política, assegura Amorim, do MinC, é transformar as ações esporádicas em projetos de Estado de longo prazo. Mas apesar desses planos de continuidade, o governo Lula frustrou expectativas no setor ao desmantelar o Pró-Ler, um dos mais importantes programas de incentivo à leitura que o país já teve, criado no início dos anos 90 pela Biblioteca Nacional por sugestão da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

A Biblioteca já anunciou planos de reativá-lo esse ano, mas por enquanto só há os diversos projetos tocados de forma independente pela FNLIJ, como convênios com a prefeitura de Nova Iguaçu, para incentivar a leitura, e com o Instituto Ecofuturo, da Suzano, para a instalação de bibliotecas comunitárias pelo país. Além, claro, do Salão do Livro Infantil e Juvenil, que acontece todo ano no Rio.

¿ A situação melhorou, mas é pouco para o que o Brasil precisa. Os problemas têm sido debatidos, mas não ocorreu uma transformação profunda ¿ acredita Elisabeth Serra, secretária-geral da FNLIJ.

Círculo vicioso de desinteresse

Não é difícil ser cético com a leitura no país. Afinal, é pequeno o número de brasileiros com capacidade de realmente ler: segundo o Instituto Paulo Montenegro, somente 26% dos jovens e adultos entre 15 e 64 anos são plenamente alfabetizados. Além disso, a ausência de bibliotecas no ensino fundamental cria um círculo vicioso de desinteresse. Todas as pesquisas indicam uma estreita ligação entre ensino e nível de leitura.

¿ Nem posso dizer que o brasileiro não gosta de ler, já que em geral nem consegue chegar perto do livro. Em todo caso, quando você tem a possibilidade de oferecer bons livros, com alguém para ler e conversar a respeito, o resultado é sempre interessante ¿ afirma Elisabeth. (Rachel Bertol)