Título: POLÍTICAS TRANSVERSAIS
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 04/02/2006, O País, p. 4

Para além da discussão sobre se a verticalização é um instrumento válido para garantir que os partidos políticos tenham representação nacional, como exige a Constituição, há outra discussão política importante a se travar com vistas à futura reforma partidária, que inexoravelmente estará em curso a partir da próxima eleição. Com ou sem verticalização, mas com as cláusulas de barreira em vigor, o quadro partidário vai ser reduzido e modificado completamente a partir dos resultados eleitorais deste ano. Por que os partidos brasileiros são tão dependentes de acordos regionais? Esta é uma característica brasileira?

O argentino Natalio Botana, considerado um dos principais cientistas políticos latino-americanos, em artigo no ¿La Nación¿ cunhou a expressão ¿transversalidade¿ para definir as coligações partidárias que se fazem hoje na Argentina, à sombra do governo central, com os partidos podendo estar no governo e na oposição ao mesmo tempo, sempre segundo a relação de forças dos interesses regionais.

É fenômeno igual ao que acontece na nossa política. Para o prefeito Cesar Maia, pré-candidato à Presidência da República pelo PFL, ¿o Estado passa a ser o partido, e através dele se atravessam os partidos e se constrói uma base aliada¿. O prefeito do Rio cita o conceito de consociativismo do sociólogo Bolívar Lamounier para definir esta base transversal de alianças políticas regionais, com o uso da máquina de poder federal em nível estadual, que explicaria, segundo ele, a proximidade do governo Lula com o grupo do senador José Sarney, ou acordos com os pequenos partidos, e não uma parceria com um grande partido.

Fala também dos ¿Partidos de Cooptação¿ definidos pelo sociólogo Simon Schwartzman desde os anos 60, cuja força se expressaria pelo uso do Estado quando lá estão, ao contrário dos ¿Partidos de Representação¿. Segundo definição do prefeito Cesar Maia, o PT na oposição era um partido de representação ¿e a explosão dos fundamentos macroeconômicos em 2002, quando ele se aproxima do poder, se dá por isso. Mas quando chega à Presidência, o PT se transforma rapidamente em partido de cooptação¿.

O cientista político Bolívar Lamounier volta ao tema em seu livro mais recente, ¿Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira¿. Ele usa o conceito de consociativismo, o favorecimento da máquina a minorias políticas, em detrimento da agregação e consolidação das forças em organizações maiores, como um dos parâmetros que devemos levar em conta para tentar entender o fenômeno da ¿transversalidade¿, mas acrescenta outros: 1) o federalismo, tradição muito forte, cujas raízes remontam ao Império; 2) a fragilidade dos sucessivos sistemas partidários, devido à supressão, não apenas de partidos considerados individualmente, mas de todos os sistemas partidários, desde a Primeira República; 3) o individualismo intrapartidário, permitido e fomentado pelo sistema proporcional com listas abertas; 4) as dimensões continentais do país e o vertiginoso crescimento do eleitorado na segunda metade do século 20.

Já o sociólogo Simon Schwartzman, autor do livro ¿Bases do Autoritarismo Brasileiro¿, defende a tese de que o sistema político brasileiro ¿não é formado pela simples representação de interesses privados na esfera política, mas que há uma forte esfera, a estatal, que tem sido, historicamente, tão ou mais importante do que a simples representação de interesses privados¿. Este setor estatal era, na sua origem, patrimonial-burocrático, e, na medida em que criava um sistema político com partidos, este sistema operava por cooptação das lideranças que fossem surgindo na sociedade mais ampla, ressalta ele.

Segundo Schwartzman, as origens desta forma de organização do sistema político ¿remontam ao Estado patrimonial português, estão associadas ao padrão de colonização que eles trouxeram ao Brasil, e se prolongou nas elites que administraram o Império e mantiveram o controle da coisa pública desde então¿. Simon Schwartzman lembra que existe toda uma linha de interpretação do sistema político brasileiro nestes termos, a começar por Raymundo Faoro, e seu famoso livro sobre o estamento burocrático.

Mas, para ele, quem realmente entendeu o que estava acontecendo foi Victor Nunes Leal, no seu clássico ¿Coronelismo, enxada e voto¿. Faoro, comenta Schwartzman, acreditava que o estamento burocrático era ¿como que um destino, uma essência da sociedade brasileira, do qual só poderiam vir coisas ruins, e passou a vida lutando contra este monstro, que, por definição, jamais poderia ser derrotado¿. Victor Nunes, ao contrário, mostrava como os grupos e setores ligados ao poder central, embora dominantes e influentes, dependiam do apoio e da troca de favores dos ¿coronéis¿ nas eternas disputas de poder que ocorriam no seio do Estado.

Estes ¿coronéis¿, analisa Schwartzman, não eram, como alguns pensavam, simples representantes de interesses agrários, mas, justamente, pessoas que se especializavam nesta barganha, e graças a isto conseguiam apoio para manter suas posições de poder nas disputas locais. O ponto principal que aprendemos com Victor Nunes, segundo Schwartzman, é que ¿o estado não é monolítico, seus espólios estão sempre em disputa, e por isto seus detentores precisam fazer barganhas e parcerias para existir¿.

¿Numa simplificação talvez exagerada, mas sugestiva¿, Schwartzman argumenta no seu livro que ¿sempre houve, desde o Império pelo menos, uma tensão entre esta forma de fazer política, típica de sociedades de estados relativamente avantajados e capitalismo canhestro, e as formas pelas quais normalmente se pensa a política, baseada nos interesses privados que articulam para colocar o setor público agindo conforme seus interesses¿. (Continua amanhã)