Título: FALTA ACREDITAR NA DIFERENÇA
Autor: TERESA COSTA D¿AMARAL
Fonte: O Globo, 04/02/2006, Opinião, p. 7

¿Eu acreditava na justiça.¿ Aquela que os homens procuram fazer através do exercício paciente da democracia e do respeito às leis. Mas nos últimos tempos tem sido difícil perseverar nessa crença. Estou naquela época da vida em que cada vez mais só acredito nas pessoas, no que de pessoal elas podem fazer. Confio na alma de quem posso olhar nos olhos.

Continuo ainda sabendo que é preciso lutar por um país mais justo, e ainda persigo o uso das nossas leis como um dos caminhos para podermos alcançar justiça social. Tendo trabalhado sempre com pessoas com deficiência, foi esse um dos poucos meios que encontrei para derrubar preconceitos, discriminações, irresponsabilidades, injustiças. De governantes e da sociedade.

A impossível igualdade que permeia a exclusão do diferente é a base do preconceito contra tudo que não é belo, perfeito, competente, eficiente. Perseguimos o respeito às diferenças e à igualdade social como se fossem um sonho inalcançável. Mas o que pode um simples sonho quando o preconceito que confunde deficiência e incapacidade se torna também sinônimo de um despudorado sentimento eugênico?

Acreditar no império da igualdade radical alicerça o preconceito contra a diferença, é por esse caminho que o mundo encontra justificativas para discriminar minorias, alijar diferentes, estigmatizar o imperfeito, coonestar a rejeição, a repulsa. Desse modo encara-se diferença como ¿deformidade¿, como ¿aleijão¿, como ¿chaga¿. Justificam-se assim como instintivas atitudes irracionais de preconceito e discriminação.

Com meus mais de 20 anos de trabalho na área de políticas sociais públicas, ouso dizer que uma das maiores dificuldades existentes para a construção de um país mais igualitário é a discriminação velada que atinge pensamentos e atitudes, e explica preconceitos que se procura sempre justificar.

O poder público no Brasil tem constantemente negligenciado as pessoas com deficiência. Através de justificativas as mais diversas, desde a absurda afirmação de que esse é um problema menor, até a absurda desculpa da escassez de recursos para a área procura-se desculpar a discriminação. Na verdade, esse não-reconhecimento da questão aparece no esquecimento de todos os fundamentos básicos da cidadania, todos eles desrespeitados quotidianamente no que se refere ao deficiente.

Essa insensibilidade lacra o invólucro da inconsciência, oculta a realidade e cria um mundo onde a discriminação encontra justificativa. Através da insensibilidade distancia-se o diferente, nega-se o outro. A cidadania é ferida em seu princípio de igualdade e a sociedade reafirma a inconsciência da questão. Essa inconsciência e a inconseqüência do preconceito explicam as falsas verdades escondidas, mal ditas, não ditas, que legitimam a exclusão.

Não é preciso citar nem Rui Barbosa nem Lenin sobre a realidade de tratar os desiguais com diferença para construir igualdade. Nem Goffman nem Baudrillard.

Ainda acredito na democracia do voto. Mas devemos sempre lembrar as promessas não cumpridas de candidatos a presidente, a governador e a prefeito, voltadas para nossas reivindicações e imediatamente esquecidas após a vitória. E sempre recordar os muitos, inúmeros, candidatos que nas horas de campanha procuram o apoio dos votos ligados a 10% da população brasileira, o segmento das pessoas com deficiência.

A questão não é negar a discriminação nem justificar o preconceito, mas acreditar na diferença, e lutar pela justiça social que nos faz a todos iguais perante a lei e o destino.

TERESA COSTA D¿AMARAL é presidente do Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência.