Título: A INFANTILIDADE DAS CIVILIZAÇÕES
Autor:
Fonte: O Globo, 04/02/2006, O Mundo, p. 27

Agora são charges do profeta Maomé com um turbante com a forma de uma bomba. Embaixadores foram retirados da Dinamarca, sauditas e sírios reclamam, países do Golfo tiram os produtos dinamarqueses dos mercados, milicianos de Gaza ameaçam a União Européia e jornalistas estrangeiros. Na Dinamarca, Fleming Rose, o editor de ¿cultura¿ do jornal que publicou estas charges bobas ¿ em setembro, pelo amor de Deus ¿ anunciou que estamos testemunhando um ¿choque de civilizações¿ entre as democracias seculares do Ocidente e as sociedades islâmicas. Isto prova, eu acho, que os jornalistas dinamarqueses seguem a tradição de Hans Christian Andersen. O que estamos testemunhando é a infantilidade das civilizações.

Vamos começar com o Departamento Interno de Verdades. Este não é um caso de secularismo contra o Islã. Para os muçulmanos, o profeta é o homem que recebeu as palavras divinas diretamente de Deus. Vemos nossos santos e profetas como figuras fracamente históricas, em contradição com nossos direitos e liberdade high-tech, quase caricaturas deles mesmos. O fato é que os muçulmanos vivem sua religião. Nós não. Eles mantiveram sua fé através de inumeráveis vicissitudes históricas. Nós perdemos nossa fé desde que Matthew Arnold (poeta e intelectual inglês do século XIX) escreveu sobre isso. É por isso que falamos de ¿Ocidente contra o Islã¿ em vez de ¿cristãos contra o Islã¿ ¿ porque não sobram muitos cristãos na Europa. Não há um jeito de driblar todas as outras religiões mundiais e perguntá-las por que não podemos fazer graça de Maomé.

Gosto quando há pomposas declarações de estadistas europeus dizendo que não podem controlar a liberdade de expressão ou os jornais. Isso é nonsense. Em alguns países europeus ¿ França, Alemanha e Áustria, por exemplo ¿ é proibido por lei negar atos de genocídio. Na França, por exemplo, é ilegal dizer que o Holocausto Judeu ou o Holocausto Armênio não ocorreram.

Para muitos muçulmanos, a reação ¿islâmica¿ neste caso esquálido é motivo de vergonha. Há um perfeito bom senso em acreditar que os muçulmanos gostariam de ver alguns elementos de reforma na sua religião. Se estas charges tivessem promovido avanços na causa daqueles que querer debater esta questão ¿ se ela permite um diálogo sério ¿ ninguém teria dado importância. Mas a intenção foi claramente ser provocativo. Foi tão ultrajante que só poderia ter provocado uma reação. E este não é o melhor momento para esquentar o velho lixo de Samuel Huntington sobre um ¿choque de civilizações¿. O Irã agora tem um governo de clérigos novamente. Da mesma forma, para todos os efeitos, o Iraque também tem ¿ apesar de não ter sido pensado que este país terminaria com um governo democraticamente eleito de clérigos, é isso que acontece quando se derruba ditadores. Colocar a charge dinamarquesa sobre este fogo é perigoso.

Em todo caso, o problema não é se o profeta deveria ter sido retratado. O Alcorão não proíbe imagens do profeta mesmo que milhões de muçulmanos o façam. O problema é que estes cartuns retrataram Maomé como uma imagem de violência ligada a Osama bin Laden. Eles retrataram o Islã como uma religião violenta. Não é. Ou queremos fazer com que ela seja?

ROBERT FISK é jornalista do ¿The Independent¿