Título: O Brasil no esquema de Saddam
Autor: José Castro , Chico Otavio e Toni Marques
Fonte: O Globo, 05/02/2006, O Mundo, p. 40

Empresas, grupo político e diplomata foram beneficiados por corrupção em programa da ONU

Quatro indústrias de São Paulo, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, um grupo político (o MR-8) ligado ao PMDB paulista, dois empresários e um diplomata foram os beneficiários no Brasil do esquema de corrupção do governo Saddam Hussein, durante o programa de ajuda humanitária ao Iraque, mantido pela ONU entre 1996 e 2003.

O Ministério Público e a Polícia Federal começaram a investigar as empresas nos três estados na semana passada, provocados por uma denúncia da seção brasileira da organização não-governamental Transparência Internacional. A ONG se baseou nos resultados de um inquérito da ONU sobre negócios suspeitos no programa humanitário conhecido como petróleo por comida.

Durante dois anos, uma comissão de investigação chefiada pelo ex-presidente do Banco Central dos Estados Unidos Paul Volcker reuniu provas de pagamentos ilícitos que chegam a um total geral de comissões de US$1,8 bilhão em petróleo e US$1,5 bilhão em máquinas e equipamentos, realizados por 2,2 mil empresas ao governo iraquiano. O inquérito foi encerrado em outubro e os documentos apresentados aos países que integram as Nações Unidas. O governo brasileiro recebeu os papéis, via Itamaraty. Nada fez, até a denúncia da Transparência Internacional.

As indústrias brasileiras Weg S.A., Randon Implementos, Valtra S.A. e Motocana S.A. pagaram subornos para vender máquinas agrícolas, veículos, pneus, motores e equipamentos elétricos ao Iraque, segundo demonstram documentos obtidos pela ONU no Iraque e em bancos da Europa e dos EUA.

Em apenas cinco dos contratos investigados, somando US$5,7 milhões em exportações, a ONU comprovou o pagamento de US$432,4 mil em propinas a representantes do governo iraquiano, sob o disfarce de taxas de serviços pós-venda e de transporte terrestre.

Descobriu-se, também, que Saddam Hussein presenteou o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) ¿ uma facção do PMDB de São Paulo ¿- com comissões de até US$0,30 por barril sobre a venda de mais de 6,5 milhões de barris de petróleo contrabandeado.

Procuradoria questiona empresas

O dinheiro foi obtido em vendas isoladas (do tipo spot, no jargão do mercado de petróleo), intermediadas por um dos dirigentes do MR-8, o empresário Nelson Chaves dos Santos, e pelo ex-embaixador do Iraque no Brasil Jahad Karam. Outro beneficiário das comissões de Bagdá foi o comerciante Fouad Sarhan, que durante três décadas representou a companhia aérea Iraq Airways no Brasil e em Portugal.

Em Caxias do Sul (RS), a procuradora da República Sônia Niche pediu e o delegado federal Noerci da Silva Melo notificou a Randon sobre a abertura de um inquérito. A empresa fazia vendas ocasionais e em pequena escala ao Iraque desde 1978, mas em novembro de 1999 um de seus gerentes, Jascivan de Souza Carvalho, acertou a exportação de cem semi-reboques tanques para a estatal iraquiana Oil Distribution Company. A Randon comemorou.

Segundo investigadores da ONU, em apenas dois contratos (números 93081 e 930399) ela faturou US$1.384.676. O preço cobrado foi inflacionado em US$134.201 em relação ao valor de face do contrato. A indústria gaúcha embutiu US$125.245 em propinas, disfarçadas de ¿taxas de serviço pós-venda¿ na entrega, e mais US$1.800 em ¿taxas de transporte terrestre¿.

Os pagamentos dos subornos feitos pela Randon, informa a ONU, estão registrados no Ministério das Finanças do Iraque e foram ¿totalmente confirmados por informação bancária¿. Durante semanas O GLOBO tentou, sem êxito, obter explicações da empresa.

Já a Valtra do Brasil, de Mogi das Cruzes (SP), diz estar ¿surpreendida¿. Suas operações com o Iraque, alega, ocorreram ¿dentro da mais perfeita legalidade¿. Ela vendeu tratores e peças ao Iraque em 2002.

Em dois contratos investigados, a Valtra ganhou US$3.152.742. Um deles (número 602086) apresentava valor de face de US$1.994.606, mas acabou custando US$2.443.242 ao Iraque ¿ US$448.636 acima do preço. Nesse contrato, a Valtra pagou ao menos US$181.316 em subornos, como taxas.

A Weg Indústrias, de Jaraguá do Sul (SC), exportou motores e equipamentos elétricos dentro do programa de ajuda humanitária aos iraquianos. Em um contrato (número 802018), com o valor de face de US$997.765, cobrou US$1.059.171 ¿- diferença de US$61.406.

Segundo a ONU, a Weg pagou pelo menos US$96.288 em propinas, sob a forma de taxas. A indústria alega ter feito o negócio ¿através de Agente Comercial Independente¿. Diz, também, ter investigado a conduta desse agente e não viu irregularidade. Mas não informa o nome do agente e também não explica as taxas cobradas ¿ classificadas pela ONU como subornos. O procurador da República Claudio Dutra Fontella decidiu fazer uma investigação preliminar contra a Weg em Jaraguá do Sul (SC).

A dois mil quilômetros dali, em Piracicaba (SP), a procuradora Adriana Marins abriu outra investigação, desta vez contra a Motocana, que vendeu carregadeiras de cana.

¿ Fizemos uma exportação normal ¿ contou Renato Campos, gerente. ¿ Pagaram direito.

A Motocana recebeu US$314.279 num contrato (número 1000790) cujo valor de face era US$279.844 ¿ US$34.435 acima do preço. E pagou US$29.786 em propinas, como ¿taxas¿, segundo a ONU. Em novembro de 2003, seu gerente Ulisses Lopes Martins esteve na cidade de Maisan, a 400 quilômetros ao sul de Bagdá, para entregar as carregadeiras a uma usina de açúcar, de propriedade de um grupo privado ligado a Saddam.