Título: GOOGLE... COM FILTROS
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 06/02/2006, Informáticaetc, p. 2

No começo de 2000, 1% da China estava na internet e o país já tinha um sistema de censura da rede. Foi quando cometi dois erros. Primeiro, previ (com a ajuda de fontes internacionais) 5% dos chineses na rede ao fim de 2005, quando o número chegou a 8,5%. Também tentei adivinhar que Beijing iria se render à pressão de tanta gente e abriria mão de seus filtros de rede. Era mais esperança do que previsão, mas escrevi e errei de novo.

Contra as expectativas, o governo chinês consegue mais do que censurar a rede, como mostra o caso da hora, do Google, que resolveu auto-censurar sua oferta no país, ¿a pedido¿ do departamento de ¿imprensa¿ e propaganda de lá. Nada de Taiwan, Tibet e Falun Dafa (falundafa.org), muito menos gmail, chats e blogs, estas coisas subversivas da rede. A China não é o único país que censura a internet; esta na má companhia de Bahrain, Irã, Cingapura, Arábia Saudita e outros menos votados. Ao contrário dos coleguinhas, a censura chinesa é sofisticada e tem, por trás, uma política de controle e mercado inteligente como poucas.

Em entrevista à ¿Playboy¿ americana de setembro de 2004, Brin e Page, fundadores do Google, diziam nunca haver conversado com a China sobre censura; que depois de um curto tempo filtrando Google, a China havia voltado atrás... ¿porque os usuários chineses não podiam prescindir do engenho¿ e que eles ¿lamentavam¿ as políticas, impostas pela China e aceitas por outros portais. Pois sim. Uma coisa é Google, propriedade de Brin e Page, que prometem nunca se entregar ao mal, em abril de 2004, data da entrevista. Mas no mês da ¿Playboy¿ houve um IPO, com as ações a US$100 e aí...

Google está no mercado há um ano e meio e suas ações estão a mais de US$400; a companhia está avaliada em US$127 bilhões, o mesmo que a Intel (e menos da metade da Microsoft). E a China parece, hoje, o verdadeiro país do futuro. A lógica de qualquer negócio americano, de tecnologia, capitalista, na Bolsa, manda que seus gestores entendam e façam negócios com a China e, óbvio, na China. Nada de posar de defensor dos pobres, fracos ou excluídos pela censura, pois o deus-mercado ¿ ou, no caso, Hu Jintao ¿ exige oferendas, e parte delas em valores e princípios. Princípios já ¿redefinidos¿ por outros, como Yahoo! e Microsoft, que têm mais tempo de mercado e estão acostumadas a jogar nas ¿regras do jogo¿.

Google deu um simples, e nem tão grande assim, passo a mais em direção ao brejo comum das companhias orientadas por retorno de investimento, shareholder value e princípios e valores bem mais ¿reais¿ do mercado de capitais. Neste, nunca houve dogmas de conduta ilibada, tanto que basta os órgãos reguladores vacilarem e algum desastre acontece. Não há ¿ na minha opinião ¿ nem por que fazer tanto barulho neste caso, pois era de se esperar que o fim fosse este mesmo. Talvez não tão cedo, mas...

E a China não é o pior caso... Tudo leva a crer que a NSA, a outra agência americana, mais cabulosa do que a CIA, tem acesso ilimitado a tudo o que acha importante nas buscas feitas em Google ou qualquer outro negócio americano. Assunto de ¿segurança nacional¿, ponto, e perguntas não são bem-vindas. Como, para melhorar o resultado da busca, Google e a competição identificam endereços IP, tentam localizá-lo no mundo real (a NSA tem patentes aqui, também), deixam cookies na sua máquina, se lembram de sua história de busca e o que mais for possível extrair de informação ao tempo em que se faz uma pergunta... a NSA, sem alarde, pega o que interessa e faz uso presente ¿- como mandar um míssil para a localização física presumida de seu IP ¿ ou armazena para uso futuro, como negar um visto ou o que nossa vã imaginação ousar.

Em resumo, Google, vestal da rede, agora com filtros e vazamentos, atendendo a NSA, China, acionistas ou a quem pedir e pagar caro, é só mais um que se atola no fosso das intromissões do Estado em nossas vidas, quer nos impedindo de fazer algo ou permitindo e nos seguindo, click a click, vida afora.

SILVIO LEMOS MEIRA (www.meira.com) é cientista-chefe do c.e.s.a.r (www.cesar.org.br)