Título: O PAPEL DO ESTADO
Autor: DENIS LERRER ROSENFIELD
Fonte: O Globo, 06/02/2006, Opinião, p. 7

Há toda uma discussão sobre o papel do Estado que é colocada em termos equivocados por estar imediatamente atrelada a contendas ideológicas e partidárias. Em ano eleitoral, fica ainda mais difícil a explicitação desses equívocos, mas, paradoxalmente, ainda mais necessária, pois os diferentes candidatos deveriam se posicionar sobre uma questão que diz respeito a todos os brasileiros. A oposição entre Estado mínimo e Estado máximo aparece como uma contraposição entre ¿esquerda¿ e ¿direita¿, como se esse tipo de sinalização espacial, muito usada para balizar sinais de trânsito, fosse dirimente por si só.

A ¿esquerda¿, sobretudo no Brasil e na América Latina, atribui à ¿direita¿ a concepção de um Estado ¿mínimo¿, como se significasse Estado esquálido ou fraco. A discussão sobre o tamanho do Estado é uma questão relativa às suas funções essenciais, a partir de uma redistribuição dos papéis respectivos da sociedade e do Estado. O pano de fundo dessa questão reside no modo de se entender a liberdade de escolha e a responsabilidade de cada um, reduzindo, portanto, o espaço para que o Estado ocupe áreas que são próprias da sociedade. Não se trata de um Estado fraco, mas de um Estado que bem preenche suas funções, forte naquelas áreas que lhe são essenciais.

O Brasil está por demais acostumado à idéia de que cabe ao Estado resolver todos os problemas, como se a sociedade fosse incapaz de tomar em mãos a sua própria vida. Assim, ao se pedir tudo ao Estado, cria-se a situação de que ele deveria tudo prover, dando-se os meios para a satisfação de tal demanda. Neste jogo entre uma idéia que comanda a demanda social e um Estado que a partir dessa mesma idéia diz respondê-la, surgem as condições de um fortalecimento do Estado por meio de um aumento de impostos, como se esse fosse a solução dos problemas sociais. A grande novidade no Brasil, hoje, reside em que a sociedade começa a se dar conta de que o Estado gasta muito e retribui muito pouco à sociedade do que lhe é arrecadado. Os movimentos contra o aumento de impostos são signos saudáveis de que há mudanças em curso, falta, no entanto, que os partidos políticos e, sobretudo, os atuais candidatos à Presidência da República, extraiam todas as conseqüências de um tal descontentamento.

Isto significa, entre outras questões, que o Estado brasileiro enfrente o gravíssimo problema da segurança pública. Se há um ponto sobre o qual quase todos os pensadores políticos estão de acordo é o que diz respeito a essa função da paz pública devendo ser assumida pelo Estado. Temos uma situação completamente esdrúxula, que aparece, porém, como normal. A segurança está sendo ¿privatizada¿, enfraquecendo, de uma maneira perigosa, o Estado. As pessoas e famílias que têm meios contratam ¿segurança privada¿, colocam alarmes e cortinas eletrônicas em suas casas e outras medidas do gênero. Uma tal situação é expressão da falência do Estado.

Há uma outra forma de ¿privatização¿ do Estado que perverte suas funções. A corrupção é das suas formas mais nefastas, pois inviabiliza o seu funcionamento, na medida em que os recursos públicos, que deveriam ter uma destinação pública, são acaparados por aqueles que, na máquina estatal, têm funções de mando. A sua mera existência, na proporção já alcançada em nosso país, seria, aliás, um alerta suficientemente forte para que o Estado revisse algumas de suas funções atuais, pois os recursos disponíveis para a corrupção diminuiriam. Uma questão que poderia ser colocada, por exemplo, diz respeito aos hospitais estatais, ditos equivocadamente públicos. Será que os recursos dos contribuintes não seriam mais bem aproveitados se essas verbas fossem destinadas a hospitais filantrópicos ou privados, que tivessem condições de melhor atender, com qualidade, aos cidadãos? O que estes exigem é um atendimento de qualidade, que faça jus aos impostos arrecadados. O Estado, seguindo uma rígida fiscalização, poderia estabelecer uma relação de custo/benefício entre os diferentes tipos de hospitais, destinando recursos aos que atendem adequadamente à população.

Problemas centrais que deveriam ser encarados para além de enfoques ideológicos, que desvirtuam os termos mesmo da questão.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.