Título: Legal no papel, informal na prática
Autor: Geralda Doca e Martha Beck
Fonte: O Globo, 08/02/2006, Economia, p. 21

Pacote do governo para construção é alvo de críticas e setor teme incentivo à favelização

O pacote da construção civil lançado ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido com críticas por especialistas e pelo setor privado. Um dos principais temores é que a redução de impostos sobre produtos como azulejo, argamassa, tubos e vergalhões ¿ a medida de maior apelo popular ¿ estimule ainda mais a expansão das favelas e a construção de unidades em áreas irregulares, de risco ou preservação ambiental. A ameaça é reforçada pelo fraco desempenho do governo na área de concessões de títulos de propriedade. Para a meta de entregar uma escritura definitiva a 450 mil famílias brasileiras até o fim de 2006, até agora 40 mil documentos foram repassados, só 8,9% do total, decorridos quase três anos do Programa de Regularização Fundiária.

O Brasil tem hoje cerca de 12 milhões de domicílios em situação irregular. Comandado pelo Ministério das Cidades e popularmente batizado de Papel Passado, a ação nacional tinha como meta em quatro anos resolver a situação de um milhão de domicílios. Mas só foram começados 829 mil processos. Desde 2003, o Orçamento da União só destinou R$15 milhões ao projeto. Para este ano, o pedido é para liberar R$20 milhões.

No Rio, cidade com alta concentração de favelas, 21,3 mil famílias já foram contactadas no programa, mas até agora nenhuma obteve o documento. Só em Manaus, segundo o ministério, o programa avançou, com uma taxa de entrega da escritura em relação a meta de 87,3%.

Para a consultora técnica da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic), Maria Henriqueta Alves, embora as medidas de desoneração de ontem contemplem pessoas físicas e empresas, para a baixa renda elas serão mais uma alternativa para a construção de abrigos precários e irregulares. Segundo ela, o pacote não inclui qualquer iniciativa para proteger essa camada da população, como desenvolver um programa intensivo de construção de novos bairros com infra-estrutura.

¿ As pessoas constroem obras irregulares porque não têm acesso à unidade formal. A questão da regularização fundiária precisa andar ¿ disse Henriqueta, acrescentando que o programa das Cidades não deslanchou por falta de financiamento ao setor público e da necessidade de urbanizar áreas de domicílios informais.

O ministro das Cidades, Márcio Fortes de Almeida, admite o risco de favelização, mas ressalta que o governo tem trabalhado pela regularização. Ele lembra que o Ministério das Cidades ampliou de R$14 mil para R$25 mil o volume de recursos dos programas Crédito Solidário (para cooperativas para construção de conjuntos habitacionais fora de favelas), desenvolvidos no Rio e em São Paulo.

¿ Se, por um lado, as novas medidas podem facilitar as construções irregulares, por outro, o governo já está estimulando moradias de forma legal ¿ disse Fortes.

A secretária nacional de Programas Urbanos das Cidades, Raquel Rolnik, defende que a concessão de crédito à construção e a regularização devem caminhar juntas:

¿ A favela não existe porque o material de construção é caro, e sim porque não há lugar para os pobres nas cidades. O custo da terra é alto. A desoneração do material de construção beneficia qualquer construtor.

Raquel argumentou ainda que o fato de o Papel Passado estar atrasado deve-se ao fato de enfrentar uma série de obstáculos, tais como custo de cartórios, cadastros e a divergência entre as legislações federal, estaduais e municipais sobre ocupação dos espaços urbanos.

A construção civil é a menina dos olhos do presidente Lula ¿ tanto pelo potencial de geração de emprego e renda quanto por afetar parcela importante do eleitorado. O pacote de ontem representará uma injeção de R$11,05 bilhões na economia em 2006. Somando esse valor aos recursos já previstos no Orçamento e no FGTS para habitação, a oferta de crédito imobiliário na economia pode chegar a R$18,7 bilhões.

O pacote frustrou a expectativa da indústria de construção, que esperava medidas mais abrangentes e agora teme que a redução isolada de IPI de alguns produtos estimule ainda mais a informalidade e a favelização do país. O presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), João Claudio Robusti, disse que o governo deveria ter adotado medidas para que lojas e pequenas armazéns hoje à margem da lei regularizassem sua situação.

¿ O ideal é ter políticas públicas para que o incentivo não pare em mãos erradas, o que no fim pode incentivar a informalidade e a favelização ¿ disse.

Entre as medidas aguardadas pelo setor estavam a redução do IR e da CSLL para as empresas que constroem moradias populares, e a criação do crédito consignado (com desconto em folha de pagamento) para a habitação. A medida, segundo o Sinduscon-SP, poderia levar a uma redução dos juros. Robusti estima ainda que a desoneração fiscal reduzirá em só 1,2% o preço final de novas moradias.

Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Pedro Taddei Neto, o efeito do pacote ¿será cosmético¿ no que se refere à situação de habitações irregulares ou precárias. Ele diz que o mais eficaz seria simplificar e desregulamentar a legislação para levar à formalidade.

José Geraldo Tardin, diretor da Associação Brasileira de Mutuários da Habitação, disse que as medidas não vão reduzir o déficit habitacional de sete milhões de unidades, majoritariamente concentrado nas classes de renda mais baixa:

¿ De um pacote de R$19 bilhões, apenas R$1 bilhão vai para casas populares. É necessário mudar a forma de financiamento. Não foi um pacote, foi um embrulho.

O professor Carlos B. Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, diz que a isenção fiscal nos insumos para construção civil pode acabar sendo mais absorvida pela classe média.

¿ A tradição das políticas nesse setor sempre foi de transferência de renda para as classes mais altas.