Título: A REFORMA QUE FALTA
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Globo, 09/02/2006, OPINIÃO, p. 7

Não passa um dia sem que os jornais publiquem histórias sobre a complexa situação das contas públicas brasileiras. Ainda assim, é preciso admitir: leitores e leitoras têm direito a alguma confusão. O que se lê e o que se ouve por aí? De um lado, que os orçamentos vão bem. O governo paga suas contas e ainda faz economia para cobrir parte das despesas com juros da dívida. E conseguiu reduzir a quase nada a dívida externa. Está certo. De outro lado, a imprensa prova todo dia que as finanças públicas vão muito mal. Os contribuintes recolhem impostos demais, os mais pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, a Previdência produz déficits crescentes, o governo paga uma conta astronômica de juros e gasta uma enormidade para oferecer serviços ruins, que privilegiam as pessoas erradas. Também está certo. Não é necessário escolher entre as versões. Ambas se completam de uma maneira até curiosa. A parte positiva é uma resposta ao lado negativo. A história se passou assim: ao longo de anos e anos, o Estado sofreu assaltos de diversas clientelas. Sob a cultura de que tudo se resolve no governo, com o governo e pelo governo, quem pôde tirou sua lasquinha: um bom emprego, uma aposentaria integral, aposentadoria sem contribuição, universidade de graça, crédito subsidiado ou dado, obras feitas só para dar dinheiro a certas empresas e por aí foi. Às vezes a clientela obtinha suas vantagens diretamente, outras vezes os governantes faziam sua carreira política distribuindo dinheiro público. A isso se somaram coisas boas, como a construção de estradas, portos, aeroportos e usinas de energia elétrica, que formaram a infra-estrutura nacional, assim como bons serviços prestados por diversos órgãos (como a Embrapa) e em algumas áreas. E tudo hoje ameaçado por falta de dinheiro. Como se precisa de dinheiro tanto para gastos bons quanto para os ruins, o Estado foi tomando recursos da sociedade de três formas: pela inflação, pelo endividamento e, mais recentemente, pelos impostos. A sociedade brasileira levou tempo para acabar com a inflação. Está agora compreendendo que a dívida pública é dívida, isto é, precisa ser paga, pois a experiência mostrou que calotes só desorganizam a economia. O último lance desse movimento se dá hoje: a sensação generalizada de que todos pagam impostos demais. Mas ainda não se tirou a conseqüência direta dessa impressão. É óbvia. Se a sociedade não quer mais inflação, se a dívida já é elevada e tem de ser paga, se todos querem pagar menos impostos, então a única saída é reduzir e reordenar os gastos públicos. Não é fácil fazer isso, aqui e em qualquer outro país. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, tem razão quando diz que este não pode ser um projeto de governo, mas do país, da sociedade. Ocorre que as diversas clientelas do governo não querem perder sua participação, seja correta ou não, justa ou injusta. Além disso, mesmo entre colegas de Palocci no governo persiste a velha cultura (ideologia) de que o país precisa é de mais gasto público, mais funcionários, mais programas. E mais impostos ou mais inflação, mas isso não dizem. Tome-se o projeto de orçamento do governo federal para 2006, ora em tramitação no Congresso Nacional. É como se estivesse tudo bem. O projeto aumenta o gasto público além da inflação esperada, eleva o déficit da Previdência e simplesmente prevê pagar isso tudo com mais receita, isto é, mais impostos. Isso mostra que estamos diante de um impasse. É necessária, e urgente, uma ampla reforma fiscal ¿ dos gastos e das receitas ¿ com a finalidade de reduzir o tamanho do estado em relação ao país, diminuir a carga tributária e melhorar a qualidade das despesas e dos investimentos. Ao mesmo tempo, parece disseminada a conclusão de que é politicamente inviável fazer isso. Tal projeto passa pelo Congresso e os políticos, como se vê agora na elaboração do orçamento, gostam é de gastar, não de cortar. Resumo da ópera: a reforma do setor público tem de sair da sociedade. Seria um grande avanço se líderes responsáveis colocassem o tema na campanha eleitoral deste ano.