Título: SEM FOCO NO PROBLEMA
Autor: Geraldo Doca e Cássia Almeida
Fonte: O Globo, 09/02/2006, ECONOMIA, p. 21

Planos de habitação se arrastam há 10 anos e pacote é criticado por não privilegiar baixa renda

Os programas de habitação do governo federal implementados nos últimos dez anos não conseguem atingir famílias com renda de até três salários-mínimos, onde estão concentrados 84% do déficit habitacional no Brasil. Apesar de serem em tese focados nesta parcela da população ¿ 6,048 milhões dos 7,2 milhões de unidades consideradas no cálculo do déficit ¿ rigidez da legislação, insuficiência de renda, incapacidade de mobilização e desarticulação entre as esferas de poder fazem com que os mais necessitados fiquem de fora dos projetos. Sem medidas específicas, que tenham o subsídio como principal incentivo ¿ e não o acesso ao crédito ¿ o problema não será combatido, afirmam os especialistas. O volume de subsídios hoje é de cerca de R$2,5 bilhões, segundo dados da CUT, insuficiente para cobrir a demanda. Neste sentido, os especialistas afirmam que o pacote da construção civil anunciado anteontem pelo presidente Lula, com foco mais no crédito e no consumo, é pouco eficaz. A única medida considerada um avanço foi o aumento dos recursos destinados ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), subsidiado pela União. Ele tem como alvo os moradores de palafitas, mas até agora não foi posto em operação.

UFRJ: só o mercado é risco de especulação

O economista e sociólogo Carlos Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, afirma que o problema do déficit habitacional precisa ser resolvido com oferta de terra barata, mas não na periferia, e financiamento subsidiado para a compra de habitações populares, de preferência para famílias com renda até três salários-mínimos: ¿ Se deixar para o mercado decidir, ele vai intensificar a especulação imobiliária e a desigualdade nas cidades, com os produtos voltados para classe média e alta, como aconteceu com todas as políticas públicas anteriores. A consultora técnica da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (Cbic), Maria Henriqueta Alves, bate na mesma tecla. ¿ A população com até três salários-mínimos continua sem proteção ¿ diz ela, ressaltando que não adianta oferecer só crédito para essa faixa. Apesar de Lula ter uma política nacional de habitação, com alvo na baixa renda ¿ uma das promessas de campanha ¿ na prática, houve pouca ação nesse sentido. Dos cinco principais programas voltados para esse segmento, todos têm a mesma falha: dificuldade de atingir os mais pobres. Entre eles está o Pró-Moradia, destinado ao financiamento direto a prefeituras e estados na construção de residências para a baixa renda. Mas os recursos liberados pelo FGTS acabam sobrando no Caixa, devido aos limites legais de endividamento público de estados e municípios. Outro programa, o PAR (de arrendamento residencial), em que o morador paga taxa de arrendamento para virar dono do imóvel, em tese beneficia famílias com renda mensal até seis salários-mínimos. Mas como é preciso desembolsar cerca de cem reais nas áreas urbanas para ingressar no programa, os mais pobres ficam impossibilitados de aderir ¿ o salário-mínimo é hoje de R$300. As duas principais realizações do governo Lula foram o programa Crédito Solidário, que prevê repasses a cooperativas de crédito e associação de moradores para construção de novas moradias ¿ também considerado limitado ¿ e mudanças nas regras do FGTS para focar os subsídios nas famílias com renda até cinco salários. As alterações começaram a surtir efeito no segundo semestre de 2005 e, segundo dados do Ministério das Cidades, já aumentou em 30% a participação dessa parcela nos financiamentos do Fundo. ¿ Os resultados de 2005 já nos permitem dizer que houve um aumento em relação à renda de até cinco salários-mínimos, proporcionada pelas alterações nas regras do FGTS, somados com recursos do Orçamento da União e do Crédito Solidário ¿ rebateu a secretária Nacional de Habitação, Inês Magalhães. Para a professora de Planejamento Urbano da USP e ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades, Ermínia Maricato, o governo falha em não trabalhar em conjunto com as prefeituras. Urbanização de favelas, regularização fundiária e a produção de novas unidades são fundamentais: ¿ Acho que o governo teria de exigir a escritura para evitar que a renúncia fiscal sobre o material de construção estimule construções informais ¿ disse, em relação ao recente pacote do governo, que reduziu a alíquota de IPI para produtos usados na construção de casas.

Professor critica `ações eleitoreiras¿

Para o ex-professor da FGV Ib Teixeira, enquanto não houver políticas de longo prazo para melhorar os transportes e favorecer a construção de conjuntos habitacionais decentes, o problema de 40 milhões de excluídos não será resolvido: ¿ Há eleições a cada dois anos e as políticas são de curto prazo, eleitoreiras. E o pacote, por não atacar essas questões e facilitar o acesso ao material de construção, estimula de forma criminosa a favelização. O secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, diz que é necessário que o sistema de crédito privado financie casas populares: ¿ Financiam geladeira, fogão e até carro para a classe de renda menor, mas não há crédito para moradia barata. O sistema de crédito habitacional precisa funcionar de forma análoga. Algumas linhas oficiais quase chegam perto do mais pobre. É necessário ampliar esse crédito. Outro ponto para reduzir o déficit habitacional é a regularização fundiária. Sirkis afirma que é uma tarefa intrincada, principalmente por estar dependente do Judiciário (o reconhecimento do usucapião) e dos cartórios, com a obrigação do registro de imóvel. Mas a secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Raquel Rolnik, afirma que essa questão está sendo enfrentada: ¿ A meta é iniciar a regularização de um milhão em 2006 e já iniciamos 829.163. Em processo avançado (só depende de a prefeitura repassar o título de propriedade), são 346.732 até agora e a meta é de 848 mil. Já concedemos 173.906 títulos e queremos atingir 596 mil. A meta será alcançada.