Título: DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS PARA OS EUA
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Fonte: O Globo, 09/02/2006, O MUNDO, p. 28

O problema começou na Dinamarca, um país distante do qual sabemos pouco. Envolve charges, uma forma de arte que associamos a humor leve. Deflagrou tumultos em Surabaya, Teerã, Peshawar e Somália, lugares onde não há muitos americanos. Talvez isso explique o nosso silêncio em relação à violência, à raiva e às mortes detonadas por uma dúzia de cartuns dinamarqueses retratando o profeta Maomé. Entretanto, a controvérsia expôs correntes políticas menos atraentes nos EUA também: Schadenfreude ¿ ou melhor, aquela sensação de certo alívio de que são os europeus o alvo dos tumultos. Também senti isso ao ler sobre tumultos diante de uma base norueguesa da Otan no Afeganistão. Em 2005, em Oslo, ouvi um norueguês dizer que ¿os EUA são o país mais perigoso do mundo¿. Mas também vi a nota do Departamento de Estado dizendo que ¿incitar ódio religioso ou étnico dessa maneira é inaceitável¿. Os jornais europeus não estavam incitando o ódio. Estavam mostrando o ponto de vista de suas leis. Vamos parecer melhores ao mundo muçulmano agora que os europeus parecem piores? Hipocrisia da esquerda cultural. Dúzias de jornais americanos, incluindo o ¿Post¿, disseram que não publicaram os cartuns porque preferiam ¿evitar ataques gratuitos a símbolos religiosos¿. Justo ¿ mas é verdade? Um excelente paralelo foi a barulheira que se seguiu à publicação em 1989 de uma fotografia de Cristo crucificado mergulhado numa jarra de urina. A foto levou a denúncias no Congresso e protestos. Na época muitos dos jornais americanos que agora se recusam a publicar as charges dinamarquesas publicaram a foto. O fotógrafo Andres Serrano desfrutou de seus 15 minutos de fama, aparecendo até na cobertura de moda do ¿New York Times¿. A moral: enquanto ficamos preocupados em ofender fiéis de países distantes e subdesenvolvidos, não nos importamos em ofender fiéis em casa. Hipocrisia da blogosfera de direita. Lembram-se da controvérsia sobre a ¿Newsweek¿ e o Alcorão? Em 2005, a ¿Newsweek¿ publicou denúncias de desrespeito ao Alcorão na Base Naval da Baía de Guantánamo, não comprovadas por investigação do governo. No exterior, políticos muçulmanos exageraram a reportagem, como agora exageram a história sobre as charges. O resultado foram tumultos e violência. Conservadores americanos não culparam políticos ou clérigos mas a ¿Newsweek¿ de (acidentalmente) incitar a violência no mundo islâmico: ¿A `Newsweek¿ mentiu, pessoas morreram.¿ Comentários sugeriam que a revista não apenas estava errada, como errara também ao investigar a conduta dos soldados americanos. Por lógica, os blogueiros deveriam agora atacar o jornal dinamarquês. Estranhamente, não ouvi dizerem: ¿O `Jyllands-Posten¿ insultou, pessoas morreram.¿ A moral é: defendemos a liberdade de imprensa se ela significa o direito de cartunistas dinamarqueses retratarem Maomé; mas não defendemos a liberdade de imprensa se isso significa o direito da mídia de investigar o governo americano. Naturalmente algo de bom pode sair dessa história. Se nada mais for, a controvérsia deve pelo menos acabar com a teoria ingênua de que ¿quanto mais eu aprendo sobre o outro, menos nós brigamos¿. Aos poucos, o mundo islâmico está aprendendo que não respeitamos a religião do mesmo jeito que eles. Devagar estamos aprendendo que eles pensam diferente sobre a palavra escrita e a foto impressa. E de alguma forma tenho a sensação de que esse novo conhecimento não será o início de entendimento, mas inspiração para mais violência.