Título: Por onde estamos perdendo
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 10/02/2006, OPINIÃO, p. 7

TEMA EM DEBATE: POLÍTICA E ELEIÇÕES NA AMÉRICA DO SUL

O Brasil deixou de ser atração nos fóruns internacionais. Gastou-se a mágica do Nosso Guia. Continuamos a ser o ¿país do futuro¿. Em sentido contrário, Índia, China e Rússia são apontadas como as nações promissoras de agora. O caso russo não é nada misterioso: as reservas de petróleo pagam tudo. Mas Índia e China não têm recursos naturais. De onde tiram a sua força? Certamente não de alguma milagrosa fórmula econômica, e sim do que se poderia chamar de ¿massa cinzenta¿. Somos viciados, há muito tempo, em análises econômicas. Assim deixamos de perceber outras coisas importantes ¿ e até óbvias. Como o fato de que a Índia e a China são duas das civilizações mais antigas da Terra. A China já tinha uma civilização sofisticada quando a Europa ainda era pasto para as correrias dos chamados bárbaros. Quando os jesuítas chegaram a Pequim no século XVI e começaram a mandar para a Europa os seus relatórios, todo mundo ficou de queixo caído. Até serviço público organizado os chineses já tinham, naquele tempo, com concursos que envolviam o país inteiro. E a tradição confuciana era um poderoso instrumento de cultura. Tão sedutora era essa cultura chinesa que os guerreiros de Gengis Khan, depois de pularem a Grande Muralha e conquistarem o país, em pouco tempo estavam assimilados por uma nação que, com razão, considerava-se o centro da terra. A Índia era menos organizada, devido à falta de um governo central consistente. Potentados regionais competiam entre si, e havia um choque permanente entre a tradição hindu e a linha muçulmana, que se apoderou de espaços importantes. Mas por baixo ou à volta dessas diferenças, a riqueza cultural era imensa. Tão imensa e tão difundida que, hoje, um camponês da Índia, aparentemente miserável, ainda bebe nessa tradição milenar, e está longe de ser um perdido no mundo. Do século XIX para cá, tanto a Índia como a China sofreram com as invasões ocidentais. A Índia caiu nas mãos dos ingleses. Contra a China, a Inglaterra desfechou a mais iníqua das guerras, para forçar os chineses a comprar o ópio que vinha da Índia, e que ia envenenando um já decadente império chinês. E, depois disso, a China foi virtualmente repartida entre as potências ocidentais. Esta é a origem de um ódio ao estrangeiro que Mao Tse-tung ia explorar em seu proveito. Hoje, Índia e China estão jogando o jogo da globalização com um talento extraordinário. Não são países sem problemas. O número de miseráveis, na Índia, é muito maior do que toda a população brasileira. Na China, o crescimento indiscriminado está cobrando um preço proibitivo do que ainda resta de recursos naturais. Também se pode perguntar onde ficam, nessa corrida para o futuro, as tradições que fizeram a riqueza cultural da Índia e da China. Pode haver ¿ já está havendo ¿ um choque entre o presente e o passado. Mas a sensação de dinamismo, nos dois casos, é espantosa. O mapa do mundo ¿ e da riqueza ¿ está sendo redesenhado. Onde fica o Brasil, nessa corrida? Não precisaria ficar tão mal, já que temos coisas que os outros não têm, como água, terra e outros tipos de recursos naturais. O que está faltando, e muito, é a famosa ¿massa cinzenta¿. E a vontade férrea que outros países estão exibindo. Os tão falados recursos naturais sempre foram um álibi para o nosso comodismo histórico. Como se esses recursos, sozinhos, significassem alguma coisa. O Japão não tem nada disso, e é uma potência. Também não vivemos grandes tragédias ¿ excetuada a da desigualdade social, com a qual fomos nos acostumando. A disposição tremenda que chineses e indianos mostram hoje não deixa de ser uma desforra de antigas humilhações. Aqui, a grande humilhação parece ter sido a derrota para o Uruguai em 1950. E assim vamos empurrando com a barriga. O atual momento político está prenhe de conformismos. O governo é muito ruim ¿ mas tem chances de se reeleger, dentro daquela velha máxima brasileira: ¿Tadinho, por que não dar a ele uma segunda chance?¿ O mais grave é não se perceber onde está o problema. Há problemas específicos, como a taxa de juros, o peso dos tributos, uma espécie de corrupção generalizada. Mas o problema, mesmo, é que não se investe no talento. Ainda achamos que cultura é um enfeite para ser cuidadosamente arrumado na estante, entre livros que ninguém lê.