Título: COMO VIVER DO POVO SEM FAZER NADA
Autor: Geraldo Luís Lino e Lorenzo Carrasco
Fonte: O Globo, 10/02/2006, OPINIÃO, p. 7

Otriunfo do líder cocaleiro Evo Morales nas recentes eleições presidenciais bolivianas sinaliza um momento de decisão, não apenas para o país, mas para toda a América do Sul. De fato, representa outro repúdio categórico à desolação das últimas décadas de experiências neoliberais nas políticas econômicas, que tiveram na Bolívia um balão de ensaio com a ruinosa ¿terapia de choque¿ do então ministro da Fazenda Gonzalo Sánchez de Lozada, no governo de Víctor Paz Estenssoro (1985-89). Ironicamente, o inspirador do plano foi o economista da Universidade de Harvard Jeffrey Sachs, hoje um ¿cristão novo¿ que anda pregando um controvertido plano para a superação da pobreza mundial até 2025. Como presidente, Sánchez de Lozada tratou de aprofundar o choque neoliberal, com os resultados conhecidos. Eleito no primeiro turno e com o seu Movimento ao Socialismo (MAS) elegendo uma expressiva bancada parlamentar (metade da Câmara dos Deputados e quase metade do Senado), não obstante, Morales terá ao seu lado apenas dois dos nove novos governadores de departamentos (equivalentes aos estados brasileiros), que passarão a controlar 70% de seus orçamentos. Com isso, haverá um novo cenário político no país, o qual exigirá grandes doses de bom senso e prudência de todos os seus atores, para evitar que ressentimentos históricos e visões de nação distintas voltem a detonar o botijão de gás boliviano. Entre os riscos latentes das reações exacerbadas à patologia neoliberal, destaca-se outra patologia, a ilusão separatista, que viceja tanto entre grupos indígenas convertidos ao ¿etnonacionalismo¿ como entre certos setores econômicos do leste do país, principalmente em Santa Cruz de la Sierra (que contam com simpatias explícitas dos ¿neoconservadores¿ de Washington). A primeira se baseia em formulações étnicas frontalmente contrárias aos valores da civilização ocidental e ao próprio processo de miscigenação formador da Ibero-América, como enfatizou a jornalista mexicana Silvia Palacios, em uma conferência realizada em Buenos Aires, em 8 de novembro último. Em uma entrevista divulgada pela agência noticiosa Adital, em 20 de dezembro, já eleito, o próprio Morales explicitou tais inclinações:

Adital ¿ E o sonho da pátria grande irá se realizar? Morales ¿ Evidentemente, uma nova América Latina integrada, uma nova pátria. É possível construir uma nova nação. Em nossa maneira de entender, é o Pachacutek, o novo, com base no respeito à Pachamama, que é a mãe-terra, e, além disso, com base na nossa lei cósmica, que é: ¿Ama Sua, Ama Llulla, Ama Q¿ella¿ ¿ não mentir, não roubar, nem ser fraco. Na cultura quéchua-aimara, quem rouba é castigado com a pena máxima, enquanto, na cultura ocidental, lamentavelmente, não, pois são especialistas em mentir, são especialistas em roubar, são especialistas em estar ociosos. Mas, como fazer política para viver do povo sem fazer nada? Creio que essas são as diferenças profundas que temos. Se semelhante ideologia ganhar corpo em um cenário como o boliviano, haverá um sério potencial para a deflagração de conflitos ¿à la Pol Pot¿, principalmente se Morales não conseguir atender às expectativas de progresso socioeconômico despertadas por sua eleição. É escusado dizer que as conseqüências de um tal quadro seriam nefastas para o futuro do subcontinente, principalmente diante da possibilidade de que o ¿etnonacionalismo¿ ganhe corpo no Peru, onde está na raiz do discurso do candidato presidencial Humala Ollanta. Por outro lado, uma importante parte da responsabilidade quanto ao futuro da Bolívia cairá sobre a Argentina e, principalmente, o Brasil, o grande fiel da estabilidade e das perspectivas regionais. Primeiro, ambos deveriam deixar claro o repúdio antecipado a qualquer tentativa de fragmentação do Estado nacional boliviano. Ademais, urge que as elites dirigentes brasileiras deixem de lado a sua atitude ¿business as usual¿ e se dêem conta de que a integração e o progresso de toda a América do Sul requerem a adoção de um princípio superior, que oriente as políticas públicas internas para o bem comum e as relações regionais para uma cooperação solidária regida por uma visão de futuro otimista e compartilhada ¿ contexto no qual os recursos naturais representam meios para se atingir tais objetivos. A recusa em seguir esse caminho, deixando que os interesses ¿de mercado¿ orientem grande parte das relações com os vizinhos, tende a aprofundar a insatisfação com o Brasil (não raro visto como ¿subimperialista¿), prevalecente na Bolívia e nos parceiros do Mercosul. Em síntese, sem uma mudança de rumo na visão estratégica e, principalmente, na política econômica de Brasília, será muito difícil, senão impossível, qualquer avanço sério na integração regional. Na essência desse processo estão os grandes projetos de infra-estrutura energética e viária da Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), cuja implementação requer uma grande dose de coordenação política e não pode ser confiada preferencialmente à iniciativa privada, como crêem alguns. Entre eles, de especial interesse para a Bolívia, destaca-se o complexo hidrelétrico-hidroviário do Rio Madeira, que, além de gerar energia para o desenvolvimento de uma vasta região nos dois países, proporcionará à Bolívia uma crucial saída hidroviária para o Atlântico, pagando uma dívida histórica da frustrada ferrovia Madeira-Mamoré (e abrindo a possibilidade de uma ferrovia eletrificada entre Porto Velho e Manaus). Além dos aspectos econômicos, tais projetos constituem poderosos agentes disseminadores de otimismo, confiança no futuro e desenvolvimento duradouro, fatores que muito poderão contribuir para neutralizar tensões internas como as latentes na Bolívia de Evo Morales e na vizinhança.