Título: UNIÃO IMPOSSÍVEL
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 12/02/2006, O PAÍS, p. 4

Em meio ao tiroteio eleitoral, foi surpreendente a revelação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que, ao fazer a transição do seu governo para Lula da maneira elegante como fez, distendendo o ambiente político do país, visava, além do fortalecimento da democracia, uma contrapartida política que pudesse resultar num grande governo de união nacional.

De fato, nos primeiros momentos do governo Lula, tanto PSDB quanto PFL ajudaram o governo em votações cruciais, como a reforma da Previdência, ao mesmo tempo em que a base petista reagia à pauta reformista que surpreendentemente o governo assumiu. Não é possível precisar exatamente quando esse princípio de entendimento desandou, mas é possível definir que, a partir do momento em que prevaleceu no ¿núcleo duro¿ do governo a posição do então todo-poderoso ministro José Dirceu, de que o adversário a ser batido era o PSDB, essa aproximação foi ficando cada vez mais difícil. Hoje, quem dá essa palavra de ordem é o ex-presidente Fernando Henrique: o adversário é o PT. Havia no governo, como ainda há, setores claramente favoráveis a uma grande coligação da social-democracia, embora essa espécie de ¿sonho¿ tenha sido adiada sine die a partir do momento em que as acusações de corrupção tomaram conta do quadro político. O próprio Lula retoma sempre a idéia de uma grande composição de centro-esquerda com o PSDB, sendo que o PT representaria a esquerda, o que não corresponde ao pensamento dos tucanos. Agora mesmo, no auge da agressividade verbal contra o governo petista, o ex-presidente Fernando Henrique é capaz de falar com delicadeza de sua relação anterior com Lula, e também o presidente, que demonstra ser especialmente sensível aos ataques de seu antigo amigo, revela-se surpreso com a virulência deles, denotando mais decepção do que rancor. Essa união, que parece hoje fora de cogitações, já andou nos planos de muitos, e pode se tornar realidade por artimanhas da política. Ao defender a tese de que o adversário político principal era o PSDB, José Dirceu montou uma estratégia que tinha tudo para dar certo: fazer uma aliança ampla com o PMDB, assim como o PSDB havia feito com o PFL. Na verdade, Dirceu estava certo no seu diagnóstico. Com o PMDB dentro do governo, os demais partidos teriam papéis secundários, como tiveram nos governos de Fernando Henrique. Lula vetou a predominância do PMDB na aliança governista, depois de tê-la autorizado, desgastando enormemente seu coordenador político. Tenha sido por simples ciúme político, ou por outro motivo qualquer, o fato é que o presidente, sem o PMDB, não teve outro remédio a não ser entregar-se aos pequenos partidos como PTB, PP e PL para formar sua maioria parlamentar, e deu no que deu. Hoje, Lula está empenhadíssimo em obter o apoio oficial do PMDB para sua reeleição, e por isso trabalhou tanto contra a verticalização. Ele não está disposto a aceitar as idiossincrasias regionais do PT para fechar alianças as mais esdrúxulas, desde que lhe tragam votos. Embora ainda jogue com a possibilidade de o PMDB aceitar um acordo perto de junho, se mantiver a condição de favorito que retomou nas últimas pesquisas, dificilmente isso acontecerá. Mesmo assim, a aliança com parte do PMDB sairá ainda no primeiro turno. Num eventual segundo turno contra um tucano, ele espera adesão maior ainda dos governistas do PMDB, embora o tamanho do apoio dependa exclusivamente de sua posição na preferência do eleitor. O pragmatismo peemedebista aceita qualquer acordo, e pode até mesmo aconselhar uma divisão de forças equivalentes para permitir uma negociação com o futuro governo, seja ele qual for. Mas como em política nada é impossível, existe a alternativa, remota embora, de o segundo turno ser disputado entre um candidato do PMDB e Lula. Nesse caso, cresceria a importância do PSDB, e renasceria a possibilidade de um acordo entre tucanos e petistas. Se o candidato do PMDB for Garotinho, essa possibilidade aumenta em teoria, embora na prática não seja impossível uma aliança entre o PSDB e o PMDB de Garotinho contra Lula. Se o candidato for Rigotto, aumentam muito as chances para a formação de um governo de centro-esquerda que isole o petismo. Numa hipótese remota de o PT não ir para o segundo turno, seria mais fácil fazer um acordo com o PSDB do que com o PMDB de Garotinho. No caso de Rigotto, o acordo com o PMDB contra os tucanos seria mais provável. Como se vê, são tortuosos os caminhos que levam a uma união, e muitos os obstáculos que se opõem a ela, sendo PT e PSDB partidos que têm origem e atuação política semelhantes, mas que foram se distanciando nas práticas. A visão do papel do Estado de cada um é fundamentalmente diferente, embora os dois sejam favoráveis a uma atuação direta nos setores sociais, como a formação da rede de proteção social que começou com o PSDB e foi ampliada pelo Bolsa Família do PT. Uma das diferenças é exatamente essa: o PSDB acha que programa social bom é o que diminui a cada ano, e não o que aumenta. Reduzir o número de famílias abrangidas pelo Bolsa Família significaria que muitas delas teriam sido incluídas no mercado de trabalho, o que significaria o sucesso do programa. O governo Lula, ao contrário, festeja o aumento de oito para 11 milhões dos bolsistas, numa visão assistencialista, na opinião dos tucanos. O aumento da máquina estatal, e seu aparelhamento pelos militantes petistas, é outro ponto fundamental de discordância entre os dois grupos políticos, com o PT dizendo que apenas fortalece a máquina estatal que a visão neoliberal do PSDB desmontou, e os tucanos acusando os petistas de usarem politicamente o Estado, abrindo mão da eficiência e não evitando desperdícios do dinheiro público. Essa, aliás, será uma discussão que os tucanos procurarão aprofundar na campanha: a eficiência da máquina governamental, que consideram um dos pontos mais fracos do governo Lula. A campanha, que pode vir a ser sangrenta e barulhenta, dificilmente abrirá espaço para essa união dos dois partidos que representam a social-democracia no país, e é pouco provável que essa polarização entre PT e PSDB seja quebrada por uma terceira via. Continuaremos, assim, com políticas semelhantes nas áreas econômicas e sociais, embora com organizações do Estado mais ou menos pesadas, e programas sociais mais ou menos assistencialistas. O que pode fazer toda a diferença.