Título: Energia no palanque
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 12/02/2006, ECONOMIA, p. 30

A ministra Dilma Rousseff convocou os ministérios da Fazenda, do Meio Ambiente e de Minas e Energia ao seu gabinete na quinta-feira. Assunto: lançar o projeto das usinas do Rio Madeira este semestre ainda. Tem pouca chance de fazer tudo no cronograma imaginado. Não há licença ambiental e ela pode demorar a sair. Há dúvidas técnicas sérias: o rio não tem queda de água e sua vazão cai dramaticamente durante a seca. Há um risco fiscal de dimensões amazônicas no projeto.

O projeto custará, nos preços atuais, R$20 bilhões. É muito dinheiro. Pode ficar mais caro, porque toda hidrelétrica aumenta de custo ao longo do projeto. Tucuruí subiu 77% durante a obra. No Rio Madeira, há uma razão a mais para temer o risco fiscal. O modelo escolhido pelo governo tem um óbvio conflito de interesses. A idéia é construir duas hidrelétricas, Santo Antônio e Jirau, que, juntas, vão produzir 6,4 megawatts através de uma associação entre Furnas, Odebrecht e fornecedores de equipamentos. Empreiteiros e fornecedores de equipamentos preferem que a obra custe mais; já os geradores de energia, que custe menos. É melhor evitar essa associação. Normalmente ela conspira contra os baixos custos da obra. A terceira margem deste rio de dinheiro público será o BNDES, que financiaria o projeto. Se houver algum imprevisto, alguma crise, qualquer coisa que aumente o custo do projeto, o rio desaguará no mesmo mar: o dos rombos privados pagos com dinheiro público. Justificando qualquer custo está o projeto de integração sul-americana (o Iirsa), tornando navegável o Rio Madeira. Objetivo realmente importante, mas é um perigo quando esse tipo de cálculo entra na conta. Normalmente, a decisão da burocracia e das estatais é de que qualquer custo é razoável. Para a alegria das empreiteiras e fornecedoras de equipamentos. As linhas necessárias para trazer a energia lá do Rio Madeira até o centro consumidor terão que ser enormes. Atravessarão até o primeiro centro consumidor 1.500 quilômetros. Isso encarece a obra. Como a queda é pequena, as hidrelétricas precisarão da vazão da água no rio; os donos do projeto prometem resolver o problema instalando uma turbina de tecnologia nova, alemã, a Bulbo. Ela tem comprovadas vantagens ambientais, porque precisará alagar uma área menor. Mesmo assim, há muita gente no governo afirmando que as hidrelétricas podem ficar sem funcionar parte do ano, no regime da seca. Odebrecht e Furnas garantem, no seu Relatório de Impacto Ambiental, que haverá vazão de água o ano inteiro. Especialistas em energia acham que o governo comete vários erros no projeto do Rio Madeira. Não está avaliando corretamente as dificuldades técnicas, não está dando transparência aos custos de transmissão, está investindo demais nesse projeto para atender à demanda em 2011. Há outros projetos mais viáveis na fila dependendo de esforço menor do governo. A equipe do Ibama que esteve na área fazendo a avaliação para dar a licença ambiental encontrou alguns problemas. Um deles é da vazão. ¿O nível da água oscila durante as duas épocas do ano, os estudos de vazão precisam ser aprofundados.¿ Há áreas bem degradadas já nas duas margens; mesmo assim, os técnicos encontraram grandes áreas de ¿floresta ombrófila densa¿ primária na parte que será alagada. Ao fim, recomendam vários estudos prévios. A Odebrecht, no Rima, diz que os danos ambientais são ¿recuperáveis e reparáveis¿. A ministra Marina Silva disse que não há previsão de aprovação da licença ambiental e que o assunto está com os técnicos. As licenças ambientais são sempre acusadas de impedir a construção de hidrelétricas necessárias. De fato, há várias aguardando licença. Mas há projetos com licença ambiental aprovada que não saem do papel à espera de que o governo resolva um nó regulatório, criado pela decisão do governo Lula de mudar radicalmente de modelo elétrico. Estão nesta situação São Salvador, Serra do Facão, Salto Pilão e Foz do Chapecó. A de Foz do Chapecó está sendo devolvida pela Vale à Furnas por causa do nó regulatório. Só as que já têm licença de instalação representam 1.500 megawatts. Mas existem outras seis com licença prévia. Se o governo se dedicasse a resolver as pendências, essas dez hidrelétricas poderiam ser construídas. Dissolver o nó custa um preço que o Tesouro não quer pagar. O modelo do governo anterior estabelecia uma taxa, a UBP, Uso do Bem Público. O modelo do governo atual não tem essa taxa. Enquanto o antigo modelo queria aumentar a arrecadação, o novo quer a menor tarifa. O problema é que o Tesouro disse que não pode abrir mão da receita e as empresas licitadas no velho modelo não querem pagar um custo que pode chegar, segundo cálculos do próprio governo, a algo como R$5 bilhões. O dono de uma dessas concessões imagina que teria que pagar ao governo R$600 milhões em 30 anos. Disse que se tiver que pagar isso vai desistir do projeto, que já tem licença ambiental. Tudo isso está enrolado e criando várias confusões. Tanto que o setor privado tem participado apenas ligeiramente dos leilões. Quem ocupa todos os espaços são as estatais, que, nos últimos tempos, parecem não ter restrição fiscal. Se tivessem, o governo estaria mais interessado em resolver a confusão que faz com que usinas com licença ambiental não sejam construídas porque aguardam uma solução do nó regulatório-financeiro. Em vez de se dedicar a esse problema criado por ele mesmo, o governo prefere convocar todos ao gabinete da ministra Dilma Rousseff para tentar fazer mais um projeto caro, controverso, na esperança de usá-lo como símbolo nos palanques de 2006.