Título: Tensão no Reino da Dinamarca
Autor: Vivian Oswald
Fonte: O Globo, 12/02/2006, O MUNDO, p. 36

População debate acaloradamente a crise provocada pelas caricaturas do profeta

Há algo de tenso no Reino da Dinamarca. As reações violentas que se espalharam pelo mundo muçulmano provocadas pela publicação de 12 caricaturas de Maomé num dos principais jornais dinamarqueses não se repetiram dentro país. Paradoxalmente, nos limites da pequena Dinamarca ¿ país de 5,4 milhões de habitantes dos quais 4% de origem islâmica ¿ a vida continua normal. Mas a tensão está no ar. O desgaste das relações entre a comunidade muçulmana e os dinamarqueses está exposto e a questão agora é o que fazer para agradar todos os lados. Atônitos com as cenas impressionantes de bandeiras sendo queimadas, embaixadas destruídas e mortes em meio a protestos em países do Oriente Médio, os dinamarqueses admitem que estão com medo e só querem que tudo isso acabe de uma vez. Cerca de 10 mil pessoas devem cancelar viagens ao exterior após um alerta de segurança do Ministério das Relações Exteriores. Trata-se de um sentimento que não chegaram a ter nem mesmo depois de o governo anunciar o apoio à guerra no Iraque. ¿ Acho que é uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde, estaremos diante de um atentado ou de cenas de violência. Tenho evitado trens e ônibus e, assim como eu, várias pessoas que conheço ¿ disse a secretária Mette Jensen. Para Jesper Stange, um dos pastores luteranos da catedral de Copenhague, trata-se de uma situação completamente nova: ¿ Sempre viajamos para todos os lugares com a certeza de que seríamos bem recebidos. Acho que a questão das caricaturas foi apenas a gota d¿água para uma situação de tensão que já existia. É preciso estimular o diálogo. Os dinamarqueses estão se dando conta de que vivem em uma sociedade multicultural, embora ainda sejam 85% de protestantes.

¿Somos todos filhos de Abraão¿, diz pastor

Para o pastor, que condenou a publicação das charges, é preciso enfocar os pontos em comum das religiões como base do diálogo: ¿ Somos todos filhos de Abraão. Temos uma história em comum. É muito fácil buscar as diferenças. Por que não buscar as coincidências? Desde os primeiros protestos no exterior, não foram registradas ocorrências fora do normal e o número do efetivo policial nas ruas é o mesmo, segundo o Departamento Nacional de Polícia. Mas diante da insatisfação da comunidade muçulmana, as autoridades se preocupam com os desdobramentos da crise. Um grande debate sobre a integração tomou conta da mídia local. ¿ Moro aqui há 23 anos, sou casado com uma dinamarquesa, tenho dois filhos dinamarqueses, e ainda me sinto diferente. As pessoas até são amáveis e gentis. Mas há uma diferença. Se um crime foi cometido por alguém de origem muçulmana, isso sempre vem destacado. Mas se o autor foi um dinamarquês, foi apenas um homem que o cometeu ¿ desabafa Mohammed, de origem libanesa. Nos últimos meses, o governo de centro-direita do primeiro-ministro Anders Rasmussen, que tem apoio de partidos abertamente anti-imigração na sua base, vem tentando retomar o diálogo com a comunidade islâmica. Porém, pouco depois do incidente das caricaturas, recusou-se a receber os embaixadores de países árabes. ¿ Trata-se de uma questão política. O que se vê é a manifestação de pessoas, que mal sabem o que diz o Corão e em sua maioria desconhecem a localização da Dinamarca, contra seus regimes políticos. Essas pessoas não têm dinheiro, emprego, direitos políticos e querem demonstrar sua insatisfação ¿ afirma Amina Tonnsen, escritora que lança no mês que vem o livro ¿100 perguntas e respostas sobre o Islã¿. Na Dinamarca, segundo a autora, não se trata de uma reação política. ¿ Os muçulmanos se sentem feridos, mas nem por isso vão sair as ruas queimando bandeiras e promovendo ondas de violência. Sou dinamarquesa, de origem muçulmana. Fiquei aborrecida com duas ou três das caricaturas, mas isso não quer dizer que eu vá sair por aí destruindo as coisas ¿ diz Amina. Segundo a autora, a abordagem do islamismo não é feita de maneira adequada no sistema de ensino. Embora os fatos históricos sejam corretos, diz, há sempre uma interpretação ou um tipo de linguagem que se refere à cultura islâmica de forma preconceituosa. A resposta para este problema não virá certamente de um dia para o outro. Mas uma das idéias surgidas nos últimos dias é levar a discussão para as escolas. Apesar da numerosa comunidade de origem muçulmana, não existe na Dinamarca uma grande mesquita. Geralmente, são construções discretas nos fundos de um terreno ou nos subsolos. Esta semana foi anunciada a construção da primeira grande mesquita do país. Mas, se de um lado a postura do governo não agrada os imigrantes, de outro, os mandatários acusam os imãs de falta de interesse pelo diálogo. O fato é que existe uma grande preocupação por parte de políticos e cidadãos sobre o que pode ser feito para tentar desfazer a péssima imagem adquirida pelo país. Apesar de defender a total liberdade de expressão, o próprio Poder Judiciário estudar formas de cobrar do ¿Jyllands-Posten¿. Segundo fonte do judiciário, a Procuradoria Geral está analisando se cabe um processo contra o jornal por blasfêmia e prejuízo da imagem nacional. Dependendo do parecer, o caso será levado à Corte Suprema. Até mesmo para a oposição, o momento é de apoiar o governo e buscar um equilíbrio. Mensagens de paz também circularam nos celulares, pedindo aos cidadãos que acendessem uma vela na janela como símbolo da tolerância.