Título: Entre a provocação e o respeito ao Islã
Autor:
Fonte: O Globo, 12/02/2006, ECONOMIA, p. 37

Sexta-feira. Na banca de jornal de Saint Michel, um dos pontos mais movimentados do centro de Paris, uma edição especial do jornal satírico ¿Charlie Hebdo¿ com caricaturas de Maomé vende comme des petits pains (como pãezinhos), como dizem os franceses. O jornal, que estampou na primeira página um enorme Maomé chorando e dizendo ¿é duro ser amado por idiotas¿, bateu recorde de venda: teve que fazer duas tiragens extras, e as vendas saltaram de 140 mil exemplares para 400 mil. O jornaleiro Karin Mohamed, francês de origem árabe, muçulmano não praticante, há 27 anos no negócio, vende o jornal com o sorriso de sempre, mas lamenta: ¿ É provocação política. A liberdade de expressão tem limites e quando se toca em religião, toca-se em valores. O que vamos ensinar aos nossos filhos? Que a Igreja é o bordel e nossa mãe é uma prostituta? O limite é o respeito. Posso criticar o presidente (Jacques) Chirac, mas não vou sair dizendo que ele é gay ¿ queixa-se, lembrando que há cinco milhões de muçulmanos na França e que o Islã é a segunda religião do mundo. Uma freguesa, a enfermeira Nathalie Milosevic, francesa de origem sérvia, sai com o ¿Charlie Hebdo¿ debaixo do braço, lamentando a polêmica. Ela é um exemplo do fosso entre duas comunidades da França que convivem mal: a laica e a religiosa. ¿ Estou me lixando para religião. Na França, resolvemos essa questão de religião há anos. As charges não me chocam. Não vejo problema na publicação. Os jornais que as publicaram são corajosos ¿ diz. Um estudante de história que se apresenta como Phillipe também compra o jornal. Ele concorda com a queixa de muitos muçulmanos de que caricaturas como a de Maomé com uma bomba no turbante contribuem para dar uma imagem falsa de que todo muçulmano é terrorista. Mas acha que a violência de muçulmanos ¿foi contraproducente¿. ¿ Queimar bandeiras, matar gente, como o padre italiano, causam efeito contrário. As pessoas vão pensar justamente isso: que eles (os muçulmanos) são violentos ¿ afirma.

Extremista prega ¿fim da islamização da França¿

À porta da Mesquita de Paris, a polêmica das caricatura alimenta debates. Ali Bnekhel, francês de origem argelina, 11 filhos ¿ todos franceses ¿ não se conforma: ¿ Não se deve tocar em religião. Não se toca no profeta. Não se toca na dignidade das pessoas. Mas Bnekhel, como muitos muçulmanos franceses, distancia-se da violência incitada por extremistas. Teme que ela reforce a imagem negativa que alguns franceses têm dos muçulmanos no país e dificulte a convivência. O temor tem fundamento. Phillipe de Villiers, líder de extrema-direita cotado para a eleição presidencial de 2007 (superou o também extremista Jean-Marie Le Pen nas pesquisas), quer condicionar a construção de mesquitas a um compromisso de religiosos de respeitar a igualdade entre os sexos e a liberdade. Prega o fim da ¿islamização da França¿. Bnekhel não entende: ¿ Somos milhões de muçulmanos na França e muitos não praticam a religião. Dos meus 11 filhos, só dois praticam. Sou contra as caricaturas, mas também sou contra a violência. Um verdadeiro muçulmano não mata.