Título: REPENSANDO OS JORNAIS
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Globo, 13/02/2006, OPINIÃO, p. 7

As fraudes praticadas por jornalistas norte-americanos do ¿New York Times¿ deram o que falar. Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal, Gay Talese vê importantes problemas a partir da crise que atingiu um dos ícones do jornalismo mundial. Embora faça uma vibrante defesa do ¿Times¿ ¿ ¿uma instituição que está no negócio há mais de cem anos¿¿ Talese, crítico competente e arguto, põe o dedo em algumas chagas que, no fundo, não são exclusividade do jornal norte-americano. Elas ameaçam, de fato, a credibilidade da própria imprensa. ¿Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Os dois editores não viam a cara do repórter que eles contrataram. E as reclamações de editores de que Jayson Blair deveria parar de escrever foram feitas por e-mail. Isso é muita tecnologia no jornalismo. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando¿, conclui Talese. Falta de qualidade e deslizes éticos têm conseqüências. Produzem, a médio ou longo prazos, cicatrizes na credibilidade. Um amigo gozador costuma me dizer que a expressão ¿jornalismo de qualidade¿ é contraditória em si mesma. Outro dia, quis me exemplificar esta sua opinião: ¿Veja¿, dizia, ¿boa parte do noticiário de política não tem informação. Está dominada pela fofoca e pelo espetáculo. Não tem o menor interesse para os leitores. Não resolve nada, não questiona nada, não melhora a vida das pessoas.¿ O desinteresse crescente dos leitores com as páginas de política, por exemplo (e o comentário do meu amigo é uma amostragem do que está se passando pela cabeça do consumidor de jornal), está em relação direta com o excesso de aspas, a falta de apuração, a crise da reportagem e a substituição de matéria jornalística por transcrição rotineira de fitas. O uso de grampos como material jornalístico virou, infelizmente, ferramenta de trabalho. A velha e boa reportagem foi sendo substituída por dossiê. É preciso ter cuidado, muito cuidado, com a fonte que voluntariamente procura o repórter. O grampeamento, além disso, continua sendo um delito. Independentemente das tentativas de minimizar a gravidade da sua prática, continuo achando que o melhor fim não justifica quaisquer meios. De uns tempos para cá, no entanto, o leitor passou a receber dossiês que, freqüentemente, não se sustentam em pé. Como chegam, vão embora. São chuva de verão. Curiosamente, quem os publica não se sente obrigado a dar nenhuma satisfação ao leitor. Dossiê deveria ser ponto de partida, pauta. Entre nós, virou matéria para publicação. Entramos na era do jornalismo sem jornalistas, nos tempos da reportagem sem repórteres. Ficamos, todos (ou quase todos), fechados no nosso autismo, emparedados no ambiente rarefeito das redações. Enquanto esperamos o próximo dossiê, tratamos de reproduzir declarações entre aspas, de repercutir frases vazias de políticos experientes na arte de manipular a imprensa. O jornalismo está virando show business. Espartilhados pelo mundo do espetáculo, repórteres estão sendo empurrados para o incômodo papel de uma peça descartável na linha de montagem da ciranda do entretenimento. Urge combater as manifestações do jornalismo declaratório e assumir, com clareza e didatismo, a agenda do cidadão. É preciso cobrir com qualidade as questões que influenciam o dia-a-dia das pessoas. É importante fixar a atenção da cobertura não mais nos políticos e em suas estratégias de comunicação, mas nos problemas de que os cidadãos estão reclamando. Os jornalistas precisam escrever para os leitores, e não para os colegas. O jornal precisa ter a sábia humildade de moldar o seu conceito de informação, ajustando-o às autênticas necessidades do público. O lugar de repórter é a rua, garimpando a informação, apurando, prestando serviço ao leitor. Só assim conseguiremos que os leitores, cada vez mais seduzidos pelas facilidades oferecidas pela informação virtual, percebam que o jornal continua sendo útil, importante, um guia insubstituível para a navegação na vida real.