Título: SURTO DE ABANDONO
Autor: Daniel Engelbrecht
Fonte: O Globo, 14/02/2006, RIO, p. 7

Faltam médicos e remédios e sobram problemas nos hospitais psiquiátricos

Pacientes amarrados, nus e com ferimentos. Sujeira, comida de péssima qualidade, falta de profissionais e escassez de medicamentos. Estes foram alguns dos problemas encontrados pelo presidente da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores do Rio, Carlos Eduardo, ao vistoriar os quatro hospitais psiquiátricos da rede municipal de saúde. O colapso do atendimento, constatado também pelo Conselho Regional de Medicina (Cremerj), dificulta a ressocialização dos doentes mentais, o objetivo principal da política psiquiátrica do país desde o advento da Lei Delgado, em 1989. No município do Rio, no ano passado, foram registradas 39.321 internações por problemas mentais e comportamentais. O pior cenário foi encontrado no Instituto Psiquiátrico Philippe Pinel, em Botafogo, que sempre foi referência no setor. Na unidade, vistoriada na noite de quarta-feira passada, havia três pacientes amarrados: dois na enfermaria masculina e uma na feminina, mantida presa pelas pernas e nua. Um leito improvisado no chão da enfermaria masculina, o que é proibido, também foi achado pela comissão. Na enfermaria feminina, a mistura de doentes em surto com outros em melhor estado também preocupou o vereador. Carlos Eduardo conta que foi cercado por diversas mulheres que reclamavam da convivência forçada: - Elas reclamaram do medo constante de agressões por parte das doentes que estão em crise e do barulho durante as noites. É simplesmente impossível dormir devido aos gritos, gargalhadas e à agitação.

Só 2 psiquiatras para 83 pacientes

O déficit de profissionais também chamou a atenção. Com 83 pacientes internados, o instituto contava no plantão de quarta-feira passada com apenas dois psiquiatras, uma enfermeira, que acumulava a função de supervisão, e seis auxiliares de enfermagem. Uma delas contou já ter sido agredida em duas ocasiões ao acompanhar sozinha pacientes pelo hospital, que tem corredores com iluminação deficiente. O problema é agravado ainda pelo fato de o elevador da enfermagem estar quebrado há três anos. Os doentes precisam ser conduzidos por três andares pela escada. O caso mais grave de maus-tratos foi encontrado no Hospital Álvaro Ramos, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, que presta atendimento clínico a doentes mentais. Em vistoria realizada na terça-feira da semana passada, a comissão se deparou com uma paciente com uma ferida profunda na perna, com pontos de necrose, provocada pelos dias seguidos de contenção física. Portadora de Doença de Huntington ou Coréia, que causa movimentos involuntários, ela está na unidade desde 6 de janeiro. No prontuário, os médicos pedem a sua transferência. - É provável que ela esteja amarrada desde que veio do Hospital Lourenço Jorge, onde foi internada em novembro com traumatismo craniano. As bandagens estavam sujas de sangue, o que mostra que ela vem se debatendo e agravando cada vez mais o ferimento. Do jeito que está, pode sofrer uma infecção generalizada e até morrer - disse Carlos Eduardo. Além dela, havia outros dois doentes amarrados no Álvaro Ramos. A situação se repetiu no Hospital Jurandyr Manfredini, também na Colônia Juliano Moreira, vistoriado no mesmo dia. A manutenção de pacientes amarrados gera riscos. Em junho passado, Robert Pereira Alencar, de 48 anos, morreu na Clínica de Repouso Santa Edwiges, em Sepetiba, depois que o leito onde estava pegou fogo. Ele estava contido e teve 61% do corpo queimado. Especialistas dizem que o uso de amarras deve ser provisório. - A contenção física, sempre acompanhada pelo uso de medicamentos, pode ser necessária em certos momentos de delírios ou de agitação intensa. A duração deve ser apenas enquanto o remédio não faz efeito - afirma o professor Ademir Pacelli Ferreira, do Instituto de Psicologia da Uerj e supervisor da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Pedro Ernesto.

Dos 300 leitos, 60 interditados

Durante as inspeções, o vereador constatou a escassez de medicamentos, o que pode estar estimulando o uso de amarras: sem os remédios, os doentes ficam mais suscetíveis aos surtos. Na farmácia do Hospital Jurandyr Manfredini, os principais anticonvulsivantes e antidepressivos, como carbamazepina, tegretol, anafranil, diazepam e melleril, estavam em falta na terça-feira passada. No Philippe Pinel, uma auxiliar de enfermagem confidenciou ao vereador que estava sendo obrigada a amarrar pacientes porque não havia na enfermaria feminina comprimidos de Dormonid. Já no Álvaro Ramos parte do fundo rotativo, de R$36 mil anuais, que deveria ser usado com outras despesas, é usada na compra de medicamentos. Problemas estruturais também são uma constante. Os corredores do Instituto Nise da Silveira - que teve a emergência transferida para um posto de saúde depois que uma central elétrica explodiu em outubro passado - parecem ruínas, com portas e paredes quebradas. Há até estalactites no banheiro de uma enfermaria, devido a anos de infiltrações. O instituto foi vistoriado a 5 de janeiro e estava com 60 dos 300 leitos interditados. Nos outros hospitais, a manutenção, segundo o vereador, é prejudicada porque a prefeitura não vem pagando as empresas. O mesmo ocorre com alimentação e segurança. - No Jurandyr Manfredini, o cardápio de terça-feira era arroz boiando na água, carne moída e creme de ervilha, tudo com um aspecto horroroso. Muitos doentes rejeitaram a comida. Dos três portões da unidade, apenas um estava aberto devido à falta de vigilantes - disse o vereador. Para o presidente do Cremerj, Paulo Cesar Geraldes, que é psiquiatra, a situação é caótica. Ele diz que está havendo uma interpretação errada da Lei Delgado: - Foi instituída com essa lei uma política de "desospitalização", que é correta. Mas os gestores públicos estão se esquecendo que as pessoas esporadicamente precisam ser internadas quando têm crises. Estão desmantelando completamente a rede pública sem atentar para isso. Para a Secretaria municipal de Saúde, não há carência de pessoal no Philippe Pinel e no Jurandyr Manfredini. Segundo a direção do Pinel, eventuais momentos de grande demanda na emergência são sanados com remanejamento de profissionais de outras áreas do instituto. A secretaria divulgou nota alegando que os doentes recebem tratamento adequado. "Os pacientes que são levados em estado de emergência normalmente chegam agitados e agressivos. Em alguns casos, é necessário imobilizá-los a fim de aplicar medicamentos para acalmá-los. As medidas são momentâneas e visam a garantir a integridade física do próprio, de outros pacientes e de funcionários", diz a nota.