Título: Sem horizonte
Autor: Miriam Leitão
Fonte: O Globo, 14/02/2006, ECONOMIA, p. 18

Nos últimos dois dias, este jornal publicou duas matérias que revelam como o Brasil tem sido insensato. No domingo, uma reportagem mostrava que o governo está aumentando as despesas correntes todos os anos e alguns itens têm crescimento explosivo. Ontem, outra reportagem mostrava que o déficit da Previdência acumulado chegou a R$1 trilhão. Conclusão: é preciso, sim, tentar planejar o futuro fiscal do país. Rudimentar é não fazê-lo.

Quando, meses atrás, os ministros Antonio Palocci e Paulo Bernardo quiseram discutir o horizonte de dez anos nos gastos públicos, a iniciativa foi atingida pelos petardos da Casa Civil. Esse planejamento era "rudimentar", disse a ministra Dilma Rousseff. O presidente Lula deu razão à ministra e isso foi um cala a boca nos dois ministros. Nada melhor para provar que é preciso olhar dez anos à frente do que olhar para dez anos atrás. Os dados que saíram no GLOBO mostram que o país não agüenta outros dez anos como foram os últimos dez. Portanto é preciso conter despesas e planejar reformas que possam evitar seu aumento explosivo. Mesmo planejando, o resultado pode não ser tranqüilizador. - Quando foi feita a reforma da Previdência do Fernando Henrique, em 99, o governo disse que o déficit do INSS ficaria estabilizado em 1% do PIB. Hoje esse déficit está em 2% do PIB; dobrou - lembra Raul Velloso. E por que dobrou? Raul aponta três razões: os aumentos reais de salário-mínimo, a explosão do auxílio doença e as sentenças judiciais. O primeiro é aquele velho problema: ninguém consegue desatar salário-mínimo de aposentadoria e todo aumento do mínimo eleva as despesas previdenciárias. O segundo é um mistério que os especialistas acham que só pode ser fraude porque os gastos com auxilio doença têm aumentado fortemente sem qualquer justificativa; triplicaram desde 2001. Terceiro: o governo tem sido incapaz de se defender, mesmo quando tem bons argumentos, das ações judiciais de grupos que acham que a Previdência lhes deve. O último caso foi uma interpretação da URV do Plano Real. O governo Lula não recorreu, por pura demagogia, e isso acabou virando uma conta de R$13 bilhões para ser paga. O horizonte de dez anos do estudo feito por Raul Velloso ajuda a contornar as briguinhas de sempre entre PSDB e PT sobre quem aumentou as despesas públicas. Ambos aumentaram. É uma tendência constante dos governos brasileiros e que produziu o absurdo de um aumento de 81% real nas despesas em dez anos. O resultado foi minguar todas as despesas as quais o governo tem liberdade de fazer ou não. As obrigatórias crescem e as livres ficam com o que resta. É por isso que o total de investimento no ano passado foi um número ridículo: 0,5% do PIB. Mas há algumas curiosidades. Uma delas é que o governo Fernando Henrique aumentou muito os gastos de pessoal, apesar de o PT ter feito coro com o funcionalismo de que eles teriam ficado oito anos sem aumento salarial. No governo Lula, eles caíram num primeiro momento e agora estão voltando a subir. Alguns itens tiveram um percentual maior de alta, como, por exemplo, "benefícios de idosos e deficientes". Isso é o que se chama Loas. A lei foi aprovada para regulamentar a Constituição que determinou que idosos e deficientes pobres receberiam um salário-mínimo dependendo da renda familiar per capita. Essa conta iria crescer mesmo porque era um programa em implementação. Saiu de R$1,4 bilhão em 1995 para R$9,3 bilhões no ano passado. Um aumento de 559%. Ela cresce também a cada momento em que se aprova alguma mudança nos critérios para uma pessoa ser candidata a esse benefício. - Tem hora que está sendo votado algo que nada tem a ver com isso, mas o pessoal põe lá um item na lei e essa conta aumenta. A última mudança reduziu de 67 anos para 65 a idade para receber e isso aumentou em R$1 bilhão a conta - diz Raul Velloso. Cada item da despesa tem uma história. Mas o fato é que todos juntos têm aumentado anualmente em valores absolutos e em proporção do PIB. Enquanto isso, vai sobrando menos espaço para investimentos. No último mandato de Fernando Henrique, eles representaram 0,4% do PIB em 1999, ano de crise, mas, no ano seguinte, foram para 0,9%; no outro, 1,2% e, no último ano de mandato, para 0,8%. No governo Lula, esse desempenho é pífio: em 2003 e 2004, foi de 0,4% e, no ano passado, de 0,5%. Um país jovem, que em dez anos acumula um déficit previdenciário do tamanho de sua dívida interna; um país que, mesmo após fazer supostos ajustes fiscais, ainda tem apenas 0,5% do PIB para investimentos da União; um país no qual despesas obrigatórias aumentam de forma inesperada, como aconteceu nos últimos anos com auxílio doença; um país no qual a carga tributária aumentou dez pontos percentuais do PIB em dez anos precisa, definitivamente, de um planejamento de longo prazo que indique à sociedade que os gastos não continuarão aumentando. Raul Velloso acompanha os gastos públicos há anos e tem sido sempre o fornecedor desses dados que a imprensa publica. A cada nova conversa, sempre explica: - As coisas estão como da última vez em que nós conversamos, só que um pouco piores. Foi de piora em piora que o governo quase dobrou as despesas em uma década. O governo tem uma dívida de R$1 trilhão. Uma dívida enorme e resultado de muitos erros no passado. Novos erros poderão ser cometidos no futuro se o Brasil não entender a natureza dessa pedra no meio do caminho. Culpar os juros altos é fácil e simples. Tem a vantagem, inclusive, de conter parte da verdade, mas a realidade é bem mais complexa e passa pela gastança sem controle e sem planejamento.