Título: VERTICALIZAÇÃO X HORIZONTALIDADE
Autor: Roberta da Matta
Fonte: O Globo, 15/02/2006, OPINIÃO, p. 7

Algo me dizia que a lei da verticalização estava destinada ao fracasso. Pois, além e aquém das tecnicalidades, há algo de maldito na própria palavra "verticalizar", quando ela é aplicada a uma sociedade que trata a sua profundidade moral como se ela fosse uma gota de orvalho. Como se os costumes não existissem ou estivessem em construção, o que, diga-se de passagem, é uma tremenda postura moral! Vejam o problema. Verticalizar implica aprofundar e manter um mínimo de coerência e fidelidade, esses valores que a grande maioria dos políticos - sendo por temperamento ou aprendizado seres da hora e da oportunidade - abomina, porque vive num universo moral horizontal. Aquele mundo das promessas não cumpridas, da ética jogada no lixo e da horizontalidade caracterizada pela confusão premeditada entre os interesses partidários e do Estado-nacional. Como, então, "verticalizar" aquilo que tanto na política quanto na sociedade deve permanecer "horizontalizado" e ao sabor das situações? Da oposição constitutiva entre a casa (onde vale quem fez, pede ou quer) e a rua (esse lugar de conflito que nos obriga a levar em conta regras que devem valer para todos)? Se os partidos querem isonomia somente até chegar ao poder, como, então, fazer pegar uma lei que bate de frente com tudo aquilo que define o "poder à brasileira"? Esse estilo de gerenciamento público com um olho no país e um outro, muito mais gordo, no partido, nos aliados, nos amigos e nos parentes? Eu não tenho dúvida de que foi a nossa horizontalidade incestuosa entre interesse público e motivo partidário que promoveu a erradicação da lei antes mesmo que ela fosse capaz de "pegar", o que simplesmente revela a nossa leviandade de deixar para depois mecanismos básicos de aperfeiçoamento de uma vida democrática igualitária. Faltou, assim, rever as razões da lei, pois o que ouvi dizia que a "verticalização" teria sido uma imposição do judiciário. Endossando o argumento, alistavam-se as diferenças dos arranjos locais, na revelação de que cada partido tinha muitas encarnações, de modo que a fidelidade "verticalizada" era uma violência à nossa "realidade social". Essa "realidade" que não deixa prender ninguém, que faz tudo dar em pizza, que continua glorificando o populismo de esquerda e de direita e que diz enfaticamente que não se pode fazer nada porque a culpa é dos costumes e os costumes não mudam e não deixam mudar. Sua última manifestação, aliás, neste governo que tem inventado tudo, é a redescoberta do "roubei, mas estou fazendo". Mas isso, como dizia o velho Kipling, é uma outra históriaÄ O fato concreto para o ignorante em legislação eleitoral é a impressão de que o espírito da lei defunta reiterava a velha idéia e o antigo ideal de ter partidos nacionais "fortes". Agremiações definidas por interesses político-ideológicos, de tal modo íntegros em seus métodos e propósitos, que isso se refletiria nas suas alianças. Se não me falha a memória, esse era o argumento de quem demonstrava indignação com o fato de que, no Brasil, é mais fácil trocar de partido do que trocar de gravata. Imagino que o legislador tentou introduzir no matrimônio político nacional alguma forma de coerência entre os "cônjuges", evitando o acordo partidário ganancioso, equivalente ao elo com as prostitutas, conforme denunciou Roberto Jefferson. Parece que o motivo da lei era o de aproximar elos de reciprocidade pessoais a vínculos marcados por valores políticos. Teria isso sido um ideal? Ou estou redondamente enganado? Penso que essa contaminação virtuosa dos inevitáveis favores pessoais pelos grandes projetos nacionais foi um valor da velha, e hoje um tanto esquecida de si mesma, esquerda brasileira. A proposta era a de liberar as agremiações políticas eleitorais de agendas demasiadamente contextuais, dominadas por interesses locais, o que promovia alianças não-gramaticais, por isso mesmo chamadas de eleitoreiras. Até onde deveríamos nos curvar diante da tal "realidade política eleitoral", separando-a de sua exagerada e perversa feição eleitoreira? A eleitoral dizia: "isso é uma incongruência"; a eleitoreira - marcada por um inevitável realismo político - respondia: "mas sem isso não ganhamos". Seria possível aproximar uma da outra, navegando politicamente sem ficar exclusivamente com uma ou outra, como se tem feito tradicional e sistematicamente? Suponho, mas estou certamente coberto pela minha fatal ingenuidade como "acadêmico" - como um dos que, não sabendo fazer política, tenta ensiná-la, pois os nossos grandes políticos profissionais não precisam de escola: eles simplesmente fazem! -, que a "verticalização" hoje enterrada iria aproximar táticas políticas pessoais às promessas estratégicas destinadas a salvar o Brasil, mas inevitavelmente destruídas ou até mesmo postas de ponta-cabeça no nível local. Esse inevitável e onipresente nível local que não pode ser banido, e que é o estofo de nossa humanidade.