Título: Preço do almoço
Autor: Miriam Leitão
Fonte: O Globo, 15/02/2006, ECONOMIA, p. 22

O déficit comercial americano aumentou 18% no ano passado. A produtividade caiu. O governo Bush mandou um orçamento para o Congresso que exige mais emissão de dívida pública. O homem que durante 18 anos comandou a política monetária americana pendurou as chuteiras e agora o novo chefe não tem a mística do anterior. Até quando a economia mundial continuará tão bem diante de sucessivos sinais de risco? Os analistas do mercado financeiro não querem falar do assunto porque significa ter que mudar seus cenários internacionais que se baseiam na idéia de que o ano será tão bom, ou melhor, do que o ano anterior. Não há muito espaço para cenários de crise e, por isso, na imprensa americana e na européia, costumam aparecer analistas se esforçando para provar que existe precedente histórico de país que mesmo consumindo muito e mantendo déficits prolongados não entrou em crise. O indicador-chave na economia americana nos últimos anos tem sido o crescimento da produtividade. O país cresceu muito e expandiu o consumo, porém não houve aumento da pressão inflacionária. A explicação dos economistas para que esse crescimento sem pressão inflacionária não ficasse parecendo um almoço grátis era o aumento da produtividade. Só que, no fim do ano passado, a produtividade caiu ao mais baixo nível em quatro anos. Mesmo assim, não há pessimismo no ar. A avaliação mais comum é que pode ser temporário. Apenas um efeito retardado do furacão Katrina. Só em 2005, o déficit comercial americano foi de US$725 bilhões. Mas o que os economistas dos bancos americanos dizem é que, enquanto o dólar for a moeda de reserva do mundo, a moeda padrão, tudo estará bem. Por quanto tempo? Ninguém se arrisca a prever. Alan Greenspan não era tão magistral como se acreditava, mas sua saída pode custar mais do que muitos prevêem. Greenspan foi aclamado e chamado de "maestro" por ter estado no comando do banco central americano por quase duas décadas; período em que os Estados Unidos tiveram pequenos episódios de recessão e conheceram um crescimento exuberante e prolongado. Ele conseguiu reduzir o efeito de crises, como a das pontocom e o 11 de Setembro. Greenspan teve vários méritos, mas ficou com créditos que não eram dele. A economia deu o salto que deu porque passou, nesse período, por uma mudança de paradigma. Quando ele assumiu, o mundo estava entrando na era do fax; quando saiu, o mundo estava na era Google. Entre uma e outra: uma revolução. O rápido avanço das comunicações transformou o padrão da economia e foi isso que iniciou o período de prosperidade. O que Greenspan realmente conseguiu foi criar uma mística tal em torno dele que cada palavra sua era esquadrinhada para que se tentasse tirar dela um significado. Sua fama de infalível ajudou muito nas crises, porque, com poucos movimentos de política monetária e algumas palavras enigmáticas, coordenava as expectativas. Ben Bernanke começará agora a construir a fama dele; seja ela qual for. Esta semana, falará pela primeira vez no Congresso. Sua capacidade de conduzir o Fed ainda não foi testada. Se alguma crise grave acontecer, o mercado pode olhar para ele e não sentir a mesma confiança dos últimos 18 anos. Qualquer turbulência no avião, pode lembrar aos passageiros que o piloto experiente se aposentou e que o novo rapaz pode se equivocar na hora de apertar os botões. O erro de Greenspan foi pouco notado e pouco falado. Foram poucas as publicações que fizeram o que a "The Economist" fez: olhou o livro texto e viu que aquela farra bushiana cobraria o preço em algum momento. Greenspan manteve uma política monetária passiva mesmo no meio da desordem fiscal americana. O governo Bush ampliou os gastos e cortou impostos com a complacente aprovação do condutor da política monetária. O orçamento que o presidente George Bush mandou ao Congresso tem doses de austeridade e de generosidade. Só que na ordem inversa à que seria desejável. Foi austero com gastos sociais e ambientais. Em dois anos, a Agência de Meio Ambiente viu sumir US$1 bilhão dos seus dispêndios. Mas, para os gastos militares, ele abriu o cofre, como fez nos anos anteriores. Nos cinco anos de governo, Bush aumentou em 45% os já bilionários programas militares. O resultado foi um déficit de quase meio trilhão de dólares no orçamento, o qual, se ocorrer o mesmo que nos anos anteriores, pode acabar sendo maior que o programado. O resumo da história é que os Estados Unidos nunca gastaram tanto, nunca tiveram tanto déficit nem uma dívida tão alta, também nunca tiveram tanto desequilíbrio externo. Exatamente no meio desta coleção de maus recordes, o velho condutor da política monetária vai embora levando com ele a aura de infalível com que cercou o cargo. O novo chefe é uma folha de papel em branco; tem uma reputação a construir. Tomara que nada aconteça até Bernanke pegar o jeito, porque do executivo americano se espera pouco se houver uma crise econômica realmente grave. Afinal, é bom não esquecer que Bush desmaia com pretzel e Dick Cheney tenta atirar no marreco e atinge o rosto do amigo. Inacreditável. O mundo está com o motor acelerado, o ouro começa a bater recordes de mais de vinte anos, indicando que há quem esteja vendo riscos no horizonte e tente se proteger no velho e bom metal. No comando da maior economia do mundo, falta experiência a Bernanke e capacidade a Bush. A "The Economist" diz por que está preocupada; não porque Greenspan deixou o cargo, mas pelo que ele deixou para trás: o maior desequilíbrio econômico da história americana.