Título: CONFUSÃO ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA
Autor: Hêctor Ricardo Leis
Fonte: O Globo, 16/02/2006, OPINIÃO, p. 7

O conflito internacional detonado pelo cartunista do jornal dinamarquês "Jyllands-Posten" não se reduz a uma disputa entre diferentes valores. Não são a liberdade de expressão ou a defesa da dignidade religiosa que estão em discussão. É uma questão muito mais importante, com a qual o mundo civilizado não pode conviver ou compactuar. Até agora, no entanto, esta questão permanece na obscuridade talvez por conta da extrema complexidade de sua solução. A pergunta a nos fazermos é: se a legislação em vigor no país onde um muçulmano vive permite que sejam publicadas caricaturas de Maomé, com que direito um cidadão de fé muçulmana que nele viva pode se indignar e proferir ameaças às instituições deste país? Não há qualquer problema no fato de cidadãos da Arábia Saudita ou do Irã, por exemplo, não aceitarem publicações de charges com Maomé nos jornais de seus respectivos países. Se a legislação de seus Estados assim o estabelecer, não existe argumento válido, mesmo que em defesa da liberdade de expressão, para defender o direito à publicação. Certamente, em muitos países islâmicos o cartunista do jornal "Jyllands-Posten" não encontraria espaço para publicar seu material. Mas isso não seria problema nenhum, nem seria objeto legítimo de protesto, já que ele não é um sujeito de direito nesses países. Além disso, devemos considerar que cartunistas ocidentais batem à vontade em todos os símbolos sagrados de qualquer cultura, inclusive do cristianismo. Não se trata, portanto, de campanha antiislâmica, mas sim de um rotineiro trabalho daqueles cujo ofício consiste em fazer-nos rir com seus desenhos.

De que se trata, então?

Num mundo onde grupos islâmicos, alguns dos quais apelando para a morte e a destruição de indivíduos que não vivem de acordo com a sua fé, vivem em países que não participam da mesma crença religiosa, o escândalo criado em torno do episódio, politicamente insignificante, revela algo mais que intolerância. Revela uma confusão entre religião e política, entre Igreja e Estado. E isso o mundo ocidental não pode negociar. A natureza íntima de uma religião é expressar a palavra de Deus, explicando os mistérios da existência humana num plano transcendente. Desde sua origem, a Igreja Católica fez clara distinção entre o que é de César e o que é de Deus Ö e a última encíclica do Papa Bento XVI, "Deus caritas est", é mais um claro exemplo disso. O desenvolvimento da civilização ocidental tem como base a distinção entre Igreja e Estado: nem o Estado pode impor a religião, nem a Igreja pode pretender que o Estado faça o que é de seu exclusivo interesse. Jacob Burckhardt, um dos maiores historiadores do século XIX, nas suas "Reflexões sobre a História Universal" mostra que a atual situação não é uma novidade. Segundo ele, a fusão entre Igreja e Estado é um dado essencial do islamismo. Assim sendo, seu sistema de Estado é "inevitavelmente despótico". Burckhardt chega mais longe e se pergunta até que ponto o islamismo comporta algum tipo de Estado, isto é, algum tipo de Estado de Direito, tal como se entende no Ocidente. Não parece, portanto, existir conflito de valores entre Ocidente e o islamismo no que diz respeito às charges com Maomé. Conflito de valores é um fenômeno que apenas pode existir em países que separam religião e política, como acontece no Ocidente. Na maioria dos países islâmicos, não existem nem podem existir conflitos de valores precisamente pela preeminência do fator religioso na vida política. Nessas condições, o conflito de valores é decodificado como declaração de guerra e só pode concluir com a eliminação do "inimigo". Tal como ensinava Max Weber, a política desaparece quando ela é subordinada a uma ética da convicção de tipo único. A importância do problema que enfrenta hoje o Ocidente deriva da importância da convicção religiosa para os cidadãos dos países islâmicos. Sem uma convicção forte na pluralidade dos valores e na separação Igreja-Estado, nem o Ocidente poderá se defender eficientemente dos ataques dos muçulmanos radicais, nem tampouco poderá ajudar os cidadãos dessa fé a viver no mundo atual.