Título: VIOLÊNCIA E AFETO
Autor: Ana Maria Iencarelli
Fonte: O Globo, 20/02/2006, OPINIÃO, p. 7

Oprojeto de lei 2.654/03, que já foi aprovado pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, prevê a interdição do castigo físico, suscitando várias questões polêmicas. Por trás do tema está o prazer profundo pelo poder da posse do corpo de nossos filhos, crianças e adolescentes, em lugar da responsabilidade. Essa distorção patrocina a ação desgovernada de mentes patológicas na prática de espancamentos que tanto nos horrorizam. Segundo a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência, as mães ocupam o primeiro lugar nas estatísticas: 52% dos casos de violência física são praticados por elas, contra 24% praticados pelos pais, 8% por padrastos e madrastas e 13% por outros parentes, restando 3% por não-parentes. Se acrescentarmos as ¿palmadas moderadas educativas¿ a estes índices obtidos com base em denúncias, chegaremos a 70% ou 80% de mães batendo em seus filhos. É a distorção da maternidade: saiu do meu corpo, é meu. A violência é um componente da mente humana que a civilização e a cultura vêm tentando reprimir. Na Roma antiga, o pai detinha o poder de jogar os filhos nas prisões, flagelá-los e mantê-los acorrentados. Em outra época, mulheres sifilíticas davam de mamar a bebês na crença de que se livrariam da doença. O infanticídio foi tolerado até o fim do século XVII. Já não aceitamos essas condutas, nem mesmo a palmatória que era usada pela professora nas escolas. Mas, com toda a civilidade que conseguimos, a Humanidade ainda não é competente diante de seu impulso destrutivo. Guerra, terrorismo, corrupção são perversões humanas que trazem o prazer de ¿fortes¿ sobre ¿fracos¿, o prazer do exercício da opressão. Ouvi um educador falar em defesa da palmada ¿educativa¿. Para ele, a nova lei seria uma interferência na vida familiar, com ¿o Estado entrando em casa onde a supremacia tem que ser dos pais¿. Concordando, estaremos legitimando o desrespeito ao corpo do outro visto como posse: o pai, a mãe que bate no(a) filho(a), que abusa sexualmente do(a) filho(a), o marido que bate na mulher, ou seja, o mais forte exercendo o poder segundo sua arbitragem. Aliás, vale lembrar que os pais param de aplicar castigos físicos quando seus filhos crescem, e a relação das dimensões corporais entre eles deixa de ser assimétrica. É preciso ter a garantia da fragilidade do outro para banir o insuportável medo de sua própria impotência, que então cede lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência. É assim que fazem os pais com seus filhos, é o que fazem estes filhos como autores de bullying na escola, é o que continuam a fazer como pitboys nas festas e é desse modo que passam a fazer de novo com seus filhos, numa repetição doentia. O dr. Aramis Lopes Neto, coordenador do Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes, da Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência, aponta as condições adversas na família que favorecem a agressividade nas crianças. ¿Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento afetivo pobre, a permissividade e a prática de maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder dos pais.¿ Nas últimas semanas assistimos à sucessão de notícias de crianças vítimas de maus-tratos físicos: Lucas, dois anos, tinha queimaduras e hemorragia nasal; o bebê de Nova Iguaçu, ainda com o cordão umbilical, foi jogado na rua e atropelado; uma levou um chute e rolou uma escada; outra, foi espancada pela mãe e o padrasto até a morte. Esqueceremos estas monstruosidades, como esquecemos de uma Paloma, de nove meses, que morreu de traumatismo craniano, há quatro anos. Castigo físico não é educativo. Como especialista, afirmo que bater, gritar e humilhar causam dano permanente à mente em desenvolvimento. Sabemos todos que a violência é endêmica. Portanto, é preciso escutar melhor e se responsabilizar, porque a violência nasce quando morrem a palavra e o afeto.