Título: À MODA ARGENTINA
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Globo, 02/03/2006, Opinião, p. 7

E a Argentina, hein? Três anos seguidos de crescimento médio de 8%, um banho nos escassos 2,5% do Brasil. Muita gente imagina: a Argentina deu o calote na dívida e depois disso cresce aceleradamente. Ora, o Brasil tem uma bela dívida...

Mas a história nunca é simples assim. Começa que Argentina não cresceu propriamente. Saiu do buraco. O Produto Interno Bruto atual é quase o mesmo de 1998, quando se iniciou a crise desfechada pelo choque externo, ali exacerbada pelo enorme desarranjo das contas públicas e pelo câmbio fixo. Mas, atenção: enquanto o cenário externo ajudou, a Argentina de Menem cresceu oito anos seguidos (91/97) na média de 6%.

Seguiram-se então cinco anos desastrosos, nos quais o país perdeu um quarto de seu PIB. A recuperação começou em 2003, não por acaso quando o mundo engatou novo período de expansão acelerada.

Com o peso já desvalorizado, o setor exportador puxou a recuperação, com o apoio importante da indústria local, que acabou protegida pelo dólar caríssimo (a 3 pesos). A normalização relativa da vida cotidiana - bancos voltando a funcionar, governo organizado, fim das greves e dos conflitos de rua - permitiu uma volta gradativa do consumo. Além disso, o governo, desde a presidência de Eduardo Duhalde, fez uma coisa certa: passou a gerar superávit primário nas contas públicas, embora, como no Brasil, à custa de mais impostos. A carga tributária foi de 22% do PIB, em 2002, para os atuais 27%, uma solução para o Estado, um problema para o setor privado.

Mas a maior ameaça atual, de longe, é a volta da inflação - 12,3% no ano passado, 1,3% em janeiro deste ano, equivalente a um ritmo anualizado de mais de 15%.

Há várias causas, a começar pelo governo federal, que detonou os gastos durante o período eleitoral recente.

Outras causas: Kirchner determinou que a cotação certa é de 3 dólares por peso, para alegria dos exportadores e da indústria local não-competitiva. Como muitos emergentes, porém, a Argentina tem obtido forte superávit no comércio externo, com saldo anual acima dos US$11 bilhões. Assim, para manter a taxa oficial, o Banco Central compra os dólares excedentes, para o que emite pesos e toma empréstimos.

O conjunto joga lenha na inflação. Dólar caro encarece importados. A emissão de moeda local a enfraquece. Em cima disso, o BC mantém juros reais negativos - taxa nominal básica de 8,5% ao ano, abaixo da inflação. Isso estimula o consumo, que voltou ao nível pré-crise.

O problema é que os investimentos não respondem. Ou seja, o consumo está crescendo sem um correspondente aumento da produção. Inflacionário, de novo.

Os investimentos não crescem por culpa do governo. Só recentemente, o governo começou a autorizar reajustes de tarifas, obviamente atrasadas depois de um longo período de congelamento. Cessaram investimentos até em energia (petróleo e gás) - setores em que o país vai passando de exportador a importador. No ano passado, a Argentina recebeu metade dos investimentos diretos captados pelo Chile, economia bem menor.

Na produção para o consumo local, os investimentos não deslancham pela falta de competição e pela hostilidade que Kirchner dedica aos empresários, considerando-os culpados exclusivos pela alta de preços. Em resposta, Kirchner oferece vantagens para quem topar acordos de congelamentos de preços básicos. E ameaça com mais impostos, inclusive sobre exportação, para os que não se rendem.

Muitos acordos de preços foram feitos desde o final do ano passado, mas a inflação ainda não cedeu. Ao contrário, há sinais de reajustes preventivos. Setores que sabem que serão convocados para fazer acordos aumentam preços para começar a conversar a partir de patamar mais elevado.

Quase todo dia, a imprensa argentina publica reclamações de consumidores. As listas de preços congelados, sempre limitadas, excluem produtos de maior consumo ou incluem mercadorias que não se encontram. Repete-se a velha história do congelamento - dura um pouquinho, termina em desabastecimento.

Sem investimentos suficientes, com taxa de juros negativa e peso fortemente desvalorizado, a inflação é fatal.

Resumo da ópera: um grande buraco, um calote desastroso que termina com uma dívida ainda elevada, uma recuperação favorecida pelo mundo, plantando-se a volta da inflação. Alguém se habilita?