Título: NO RIO, A POLÍTICA MANDA NA POLÍCIA
Autor: Alexandre Neto e Alberto Calvano
Fonte: O Globo, 02/03/2006, Opinão, p. 7

O mais recente escândalo sobre nova tentativa de fraude no concurso para o cargo de agente policial no Estado do Rio e a ineficiência demonstrada pelos órgãos de inteligência e os comandos das polícias fluminenses na anunciada invasão da Rocinha espelham a imagem da segurança pública que é vista pelos cidadãos.

As desculpas para tais impasses brotam de maneira simplista e repetitiva, reportando à sociedade a real situação em que se encontram as nossas polícias. Elas ainda estão órfãs de uma lei orgânica que lhes outorgue uma estrutura administrativa e financeira independente e estável, livrando-as definitivamente da ingerência de dirigentes indicados politicamente, que delas se utilizam apenas para enriquecer o currículo pessoal e profissional.

Repita-se: enquanto não houver uma lei orgânica nacional para as polícias a sociedade se verá protegida por uma polícia à moda do Brasil Colônia.

Somente em maio de 1808 o país conseguiu transformar a chamada polícia dos donatários das capitanias hereditárias em Intendência Geral de Polícia -- nos moldes da existente em Lisboa. O motivo da mudança foi proteger os fugitivos da Corte portuguesa, então ameaçada pelas tropas do corso Bonaparte. O gestor do aparato de segurança dos então colonizadores lusitanos foi o desembargador do Paço, Paulo Fernandes Viana.

Não é de hoje, portanto, que as polícias são dirigidas por pessoas estranhas a seus quadros - os chamados "amigos do rei", que ocupam cargo de confiança -- os quais nem sempre possuem qualquer compromisso com as instituições que comandam e que são órgãos permanentes de segurança pública. Ou seja, enquanto os dirigentes passam, as polícias continuam, tendo a sociedade como mera espectadora daquilo que acontece - e os poderosos como principais destinatários de seus serviços. É a chamada Polícia de Estado, que perdurou depois do Estado Novo, vindo a ganhar força com a Revolução de 64. Ela sobrevive - apesar da Constituição Cidadã de 88 - pois o cargo de secretário de Segurança Pública do Estado não é de confiança da sociedade, mas sim de confiança do governante, embora estejamos sob a égide de um Estado democrático de direito.

Assim, o novo escândalo havido no citado concurso público também nos dá o tom do descrédito, da audácia e da falta de respeito da sociedade com as instituições policiais.

Não é à toa que ainda surjam pessoas como a dona Vitória: uma senhora, aos 80 anos de idade, aposentada, cansou-se de ver aquilo que o serviço de inteligência das polícias vê no seu dia-a-dia -- mas nada faz -- resolveu agir sozinha, em prol da sociedade e por conta de sua indignação. Comprou uma filmadora em módicas parcelas mensais e, num misto de cineasta e investigadora, fez e acabou por ensinar ao órgão de inteligência das polícias aquilo que já deveria ter sido feito há muito tempo.

É uma pena que ela tenha parado o seu filme em apenas um dos morros da Zona Sul do Rio. Poderia ter filmado ainda as calçadas da cidade e comprovado que nelas, também, há o loteamento do espaço público pela ilegalidade - do humilde camelô ao destemido apostador do jogo do bicho - tudo com a parcimônia e a complacência dos órgãos de repressão, orientados pela cegueira dos órgãos de informação do poder público, em todos os níveis (municipal, estadual e federal).

Pergunta-se: como acreditar em polícias que não conseguem sequer depurar seus próprios concursos, sujeitos a repetidos escândalos de violação de provas? Como acreditar em polícias que apesar de antever confrontos entre marginais não conseguem se antecipar a eles?

Tais fatos e suas graves repercussões sociais somente foram passíveis de crítica e avaliação graças à liberdade de imprensa, formadora da opinião pública e verdadeira precursora de uma polícia cidadã, que ainda haverá de se libertar dos grilhões que a corrupção e o favorecimento pessoal instalaram em suas fileiras. Somente uma imprensa livre e uma polícia liberta de influências políticas poderão dar a resposta que a sociedade tanto procura. No mais, é tudo balela e conversa fiada dos "amigos do rei".