Título: É URGENTE UM DEBATE SOBRE O ABORTO
Autor: Flávia de Almeida Viveiros de Castro
Fonte: O Globo, 04/03/2006, OPINIÃO, p. 7

Os recentes episódios de abandono de recém-nascidos obriga a sociedade a despertar para o debate sobre um tema que se mostra inadiável: a possibilidade de interrupção de uma gravidez indesejada. Os meios de comunicação têm a função social de incitar à discussão do tema, que mais uma vez demonstra ser impostergável, acerca da liberação do aborto no Brasil. Convicções religiosas à parte, a nação não pode fechar os olhos pa ra a realidade: mães despreparadas econômica e psicologicamente, que abandonam seus filhos e até cometem insanas atitudes contra a vida dos mesmos, por não terem querido a gravidez e estarem obrigadas a assumi-la até o fim. Tecnicamente, trata-se de relevante questão constitucional, eis que envolve direitos fundamentais; de um lado a proteção da vida, ainda que em gestação (artigo 5º, caput da CF) e de outro a liberdade da mulher sobre o próprio corpo e seu efetivo direito de escolha sobre ser ou não ser mãe, também albergado no mesmo dispositivo constitucional. Nem se argumente que esta liberdade existe, pois sempre há a possibilidade de dizer não, evitando-se o ato sexual. Na prática sabe-se muito bem que as mulheres, sobretudo as das camadas de mais baixa renda, sofrem verdadeira coação física e moral e se submetem à relação sexual, sem possibilidade de furtar-se ao dever que lhe é imposto por lei, conforme assinala o artigo 1.566 do Código Civil. O Brasil admite o aborto em duas situações apenas: vítimas de estupro e risco de vida para a mãe, conforme disposto no artigo 128 do CP. No entanto, a interrupção da gravidez não desejada é praticada às escâncaras, por mulheres ricas e pobres. A diferença é que, no caso destas últimas, em condições precárias, com sérios riscos de vida para a mãe. Os políticos reunidos em Brasília, que sequer comparecem às sessões para as quais estão ganhando salários extraordinários, deveriam se dedicar ao debate público sobre a controvérsia. Os juristas deveriam esclarecer os aspectos constitucionais e legais relacionados. Os médicos, as questões técnicas. A sociedade, enfim, deveria ser chamada pelos meios de comunicação de massa para um grande e inadiável debate nacional sobre o aborto, que terminaria, a exemplo do que ocorreu em Portugal, com um plebiscito. O que não é mais possível é fechar os olhos para esta relevante questão constitucional. Os bebês mortos e abandonados assim o demonstram.