Título: NINGUÉM QUER A MORTE, SÓ SAÚDE E SORTE
Autor: Rosiska Darcy de Oliveira
Fonte: O Globo, 05/03/2006, Opinião, p. 7

O mundo está envelhecendo. Em três décadas, haverá tantos idosos quanto jovens. Dessa questão tratam agora a ONU, demógrafos e economistas em pânico com as conseqüências para a previdência social. São problemas reais, mas do ponto de vista do indivíduo, a notícia do aumento da longevidade só pode ser alvissareira. Ninguém quer a morte, só saúde e sorte, sentenciou Gonzaguinha e, desde então, os brasileiros repetem em coro esse refrão. A geração dos que entram na terceira idade está começando, se tiver saúde e sorte, uma terceira vida.

A constatação é perturbadora para quem chegou lá, porque será pioneiro em inventar essa terceira vida e o fará sem parâmetros que lhe digam o que é certo ou errado, aceitável ou ridículo, sadio ou malsão. Janus com uma face voltada para a liberdade e a outra para angústia e a incerteza. Uma situação que se assemelha, hoje, estranhamente, à adolescência.

"O que é chato no envelhecer é que eu sou jovem", protestava Colette. Pessoas que se sentem jovens e ainda não se reconhecem em um corpo que não lhes parece seu, lembram os adolescentes que, com um pé na infância, assistem perplexos à revolução hormonal. Mas não é só o corpo que se torna morada incerta. Incerto é o momento em que a chamada vida ativa já se transformou para a maioria em tempo livre, em perda de identidade profissional e é preciso buscar um novo perfil, como o adolescente face à vida adulta se perguntando o que eu vou ser quando crescer. O que se vai ser quando envelhecer é uma questão nova em um tempo em que já ninguém responde simplesmente: velho.

Velhos eram os senhores alquebrados que chamávamos de vovô, eram as senhoras vestidas de negro, sempre de luto por alguém - morria-se muito cedo - e carregando um ar de condenadas, elas mesmas, à morte próxima.

A uma geração a quem se promete mais vinte ou trinta anos de vida, em boa saúde, física e mental, estão colocados uma fantástica oferta de liberdade e um convite à invenção. Sobretudo em tempos de mudança de era, quando proscreveram o quadro de valores nos quais essas pessoas foram criadas e um corpo de conhecimentos que se tornou anacrônico.

Essa geração foi atropelada pelas crises da família e do trabalho, pela globalização e pelas novas tecnologias. Já não é possível viver ignorando o que essas mutações representam como revolução na convivência entre as pessoas, a transformação que operam no acesso à informação, exigindo dos mais velhos um diálogo com essa cultura.

Os jovens sempre olharam para os mais velhos como velhos. Só que, hoje, os chamados idosos não se comportam segundo a expectativa dos jovens. Mudou sua disposição de vestir os estereótipos com que se lhes ditava uma vida sem futuro. A presença maciça na sociedade de pessoas idosas com projetos, vivendo sua vida com energia e independência, dotadas de recursos e de tempo disponível, constitui um fenômeno imprevisto que está mudando as sociedades por dentro e que, para além de saber quem vai pagar a conta da previdência, questiona os costumes.

Se os conhecimentos sofreram a combustão dos novos tempos, por que não buscar novos? Oscar Niemeyer,nonagenário, toma aulas de cosmologia.

Recentemente os Cantores do Chuveiro deram literalmente um show de vitalidade e talento,o que foi bom para eles e para o público, além de servir de exemplo a quem ainda hesita em fazer o que quer.

A grande armadilha que desfigura a existência de quem avança na idade é a nostalgia da juventude perdida e a tentativa desesperada de recuperá-la. Esse desespero tem raiz no sentimento de exclusão, no sinal de menos que vem associado ao envelhecimento. Se alguém se convence de que já não há lugar para si lá onde está, nada lhe resta senão tentar o impossível retorno. Para isso todos os sofrimentos e riscos são assumidos, inclusive as mesas de operação.

Armadilha inversa é instalar-se em uma espécie de fracasso, de mágoa, falar sempre no passado,dar a vida por consumada e reclamar que nada se faz para os idosos como se só lhes restasse a condição de assistidos.

Pessoas mais velhas são capazes de, por si mesmas, formularem e executarem seus projetos, o que será mais fácil se a sociedade pare de olhar para elas como problema, elas que tantas vezes são, sobretudo nas famílias, solução.

Assumir uma identidade viva, compatível com essa fase da existência, é mais desafiante do que lançar-se na imitação da juventude, aventura em que as fronteiras do ridículo e do patético são muito tênues.Talvez, assim, a distância entre jovens e idosos diminua, aumentem as possibilidades de convivência e proximidade, como acontece com quem viaja, visita outra cultura e encontra encanto na experiência do outro.

Nada melhor para exorcizar o fantasma da morte, já que há consenso de que a vida é, para todos, moços e mais velhos, uma doença fatal, sexualmente transmissível.