Título: A FILA DOS HORRORES PARA PEDIR O BOLSA FAMÍLIA
Autor: Letícia Lins
Fonte: O Globo, 03/03/2006, O PAÍS, p. 8

Espera de mais de 48 horas, ratos e até tentativa de estupro na disputa por recadastramento em Jaboatão

JABOATÃO DOS GUARARAPES (PE). Criado para melhorar a qualidade de vida de pessoas carentes, o programa Bolsa Família está levando os pobres de Jaboatão dos Guararapes a um cotidiano de humilhações. Cerca de três mil pessoas aguardavam ontem numa fila, sob sol e chuva, para se recadastrar e continuar recebendo o benefício oferecido pelo governo federal. Com sombrinhas, cabanas improvisadas com papelão, sentadas no chão ou em pé e com fome, a maior parte dos interessados já estava ontem esperando há mais de 48 horas, dormindo ao relento em camas improvisadas nas calçadas. Os candidatos reclamavam do lixo e de ratos e baratas durante a noite. Uma das mulheres que esperava o dia amanhecer para ser atendida foi perseguida por dois homens que tentaram estuprá-la. - Estou aqui desde segunda-feira. Não tenho emprego, meu marido está com os dois filhos em casa para que eu fique na fila. É uma humilhação. Não temos dinheiro para o ônibus e não podemos ficar indo e vindo o tempo todo - reclamava Marilene Maria da Silva, que recebe R$60 mensais. Com três filhos para cuidar em casa, Luiza de França pediu ao mais velho, Luís Francisco dos Santos, de 16 anos, que guardasse seu lugar na fila desde a Quarta-feira de Cinzas. Mas às 14h de ontem Luís ainda não havia conseguido pegar a ficha distribuída pelos servidores responsáveis pelo recadastramento. - Tive que dormir no chão. Peguei um pedaço de papelão e me deitei, mas fui acordado por rato, formiga e barata. O presidente, a prefeitura, as autoridades vivem fazendo festa e não vêem o estado do povo. Se vêem, nada fazem - dizia Luís.

Prefeitura atende só 120 por dia

Cilza Maria da Silva e Fabiana Flor da Rocha estavam ainda mais revoltadas. De madrugada elas viram uma das companheiras de fila desistir do recadastramento depois de ser atacada por marginais. A mulher se distanciou da fila para urinar num terreno baldio próximo à escola José Neves Filho, onde o recadastramento está sendo realizado. Mas foi atacada por dois homens e quase sofreu um estupro. Os candidatos ao benefício também reclamaram da venda de fichas para atendimento, por preços que vão de R$10 a R$25. A denúncia foi confirmada pelo líder comunitário Saulo Fernandes, presidente da Associação de Pequenos Comerciantes Não Legalizados de Jaboatão dos Guararapes. Ele ontem arranjou um carro de som emprestado e convenceu os beneficiários dos programas do governo a bloquearem a rua em protesto contra a prefeitura. A prefeitura informou, no entanto, desconhecer a irregularidade. Mas confirmou que só 120 pessoas que têm acesso à ficha estão sendo atendidas por dia. - Estamos desde dezembro tentando fazer a unificação dos programas sociais do governo. Mas a demanda tem sido maior do que esperávamos. Infelizmente está tudo centralizado em um só lugar para evitar fraudes, como a duplicação de cadastro - afirmou a coordenadora do cadastramento, Verônica Belo, da Secretaria de Ação Social da Prefeitura de Jaboatão. Ela disse que pediu aos técnicos que viabilizem uma forma de fazer o cadastramento em bairros diferentes, sem possibilidade de fraude. Informou que só 17 pessoas estão trabalhando no recadastramento e que a capacidade de atendimento é de 120 beneficiários por dia porque o preenchimento é feito manualmente. Cada ficha leva 45 minutos para ser preenchida.