Título: PLANTANDO LOBBY, COLHENDO PERDÃO
Autor: Regina Alvarez e Eliane Oliveira
Fonte: O Globo, 05/03/2006, Economia, p. 29

A crise na agricultura tem servido de pretexto para a renegociação das dívidas do setor agrícola e a seca é usada muitas vezes como bandeira para beneficiar grandes produtores rurais. Em dez anos, o governo federal renegociou R$25,5 bilhões em débitos do setor, mas isso não foi suficiente para estancar a pressão por novos refinanciamentos, sempre em condições mais favoráveis do que as oferecidas ao conjunto da sociedade. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu vetar projeto aprovado pelo Senado que refinancia o endividamento de produtores do Nordeste, mas a pressão pela rolagem de outras dívidas já está na mesa do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, e essa nova conta pode chegar a R$6 bilhões

A lei 9.138, de 1995, abriu espaço para uma ampla rolagem dos débitos do setor rural, logo após o Plano Real. Nesses dez anos foram realizadas sucessivas rolagens, mas os maiores beneficiados não foram os pequenos produtores rurais. Levantamento realizado junto à Comissão de Agricultura da Câmara mostra que 69% das dívidas refinanciadas e assumidas pelo Tesouro são de grandes produtores que contraíram empréstimos com valor acima de R$200 mil. Do total de R$25,5 bilhões, R$17,6 bilhões referem-se a dívidas desses produtores.

As condições de refinanciamento das dívidas do setor agrícola são muito favoráveis, quando comparadas com os empréstimos oferecidos pelo setor financeiro em geral. A rolagem foi feita por 25 anos, com juros de 3% ao ano e quem paga em dia esses débitos é beneficiado com descontos. No caso de uma dívida de R$8,8 bilhões junto ao Banco do Brasil rolada em 1998, os produtores precisam pagar apenas os juros e o principal é anulado no final do contrato.

Só no BB, as dívidas somam R$20 bi

Ainda assim, o alto nível de inadimplência chama a atenção nas dívidas refinanciadas do setor. Esse percentual chega a 11% em um montante de dívida de R$20 bilhões contraída junto ao Banco do Brasil, que foi transferida para o Tesouro. São R$2,3 bilhões de débitos em atraso, que estão sendo inscritos na dívida ativa da União. E aí também se destaca a presença dos grandes produtores rurais. Eles respondem por 90% da inadimplência.

Crítico contumaz das sucessivas rolagens da dívida rural que resultam em prejuízos para os cofres públicos, o assessor especial da Presidência José Graziano considera que no Brasil existe uma cultura de não-pagamento das dívidas agrícolas. E isso acaba prejudicando os bons produtores.

¿ A estratégia é sempre a mesma dentro da filosofia de que é melhor não pagar. Mas isso destrói o sistema de crédito, que está cada vez mais caro e restrito ¿ afirma Graziano.

O assessor do presidente Lula defende com ênfase o veto ao projeto que refinancia as dívidas dos produtores do Nordeste e estima que, se preservado, o plano poderia resultar em um rombo entre R$25 bilhões e R$30 bilhões a médio e longo prazos para os cofres públicos:

¿ Uma vez adotados para uma região, os benefícios seriam estendidos a todo o país. E não são para os pequenos produtores ¿ destaca o assessor.

Historicamente, o setor agrícola conta com o lobby no Congresso Nacional para viabilizar o refinanciamento de suas dívidas e obter outras vantagens do governo federal. A bancada ruralista é forte e organizada e costuma agir de forma coesa quando o objetivo é mais um financiamento de suas dívidas. Foi o que aconteceu no Senado na última sessão da convocação extraordinária. A bancada ruralista não tem partido. Na defesa de seus interesses, tem aliados no governo e na oposição.

O projeto que refinancia as dívidas contraídas junto ao Banco do Nordeste (BNB) foi defendido tanto pelo PFL como pelo líder do governo no Congresso, senador Fernando Bezerra (PMDB-RN). O presidente Lula decidiu vetá-lo porque ele abre um precedente perigoso para o refinanciamento de outras dívidas de grandes produtores rurais e a conta mais uma vez iria para o Tesouro.

Para evitar um desgaste maior junto ao Congresso, o presidente Lula decidiu editar uma medida provisória que permitirá o refinanciamento das dívidas dos pequenos produtores do Nordeste e nela deve atender também aos produtores do Sul do país que tiveram quebra na safra. Na mesa de Roberto Rodrigues, já existem pedidos de refinanciamento de dívidas de mais de R$2 bilhões que estão vencendo em março e abril.

Além disso, os líderes do setor querem que o governo refinancie outros R$4 bilhões, alegando prejuízos causados por problemas climáticos em estados produtores, mas a disposição da equipe econômica, respaldada pelo Palácio do Planalto, é atender apenas os pequenos produtores.

¿ Já temos várias demandas dentro do Ministério e estamos rediscutindo a questão da dívida da safra passada ¿ informa o secretário-adjunto de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Edilson Guimarães.

Rolagem depende da Fazenda

O Ministério enfrenta a pressão direta do setor agrícola, mas qualquer decisão do governo sobre uma nova rolagem de dívidas depende do aval do Ministério da Fazenda. O assessor especial José Graziano defende que a rolagem seja restrita aos pequenos produtores:

¿ A renegociação não pode ser generalizada, senão vira calote institucional.

Para o economista Luciano Carvalho, do Departamento Econômico da Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA), está claro que há um confronto entre governo e setor privado, que tem forte conteúdo passional.

¿ O fenômeno de endividamento sempre volta e é necessária a intervenção do governo comprando, subsidiando, estimulando o comércio e o investimento em tecnologia. É o que ocorre em todo o mundo. O problema é que, sem um seguro rural eficiente, nossa agricultura é a mais desprotegida do planeta ¿ diz.