Título: É a vez do governo e do Congresso
Autor: Rodrigo Collaço
Fonte: O Globo, 09/03/2006, Opinião, p. 7

Foi muito e foi pouco, com o perdão do paradoxo, a extinção do nepotismo no poder judiciário. O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, por 9 votos a um, quase unânime, provocado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), deixou sem espaço para questionamento a resolução antinepotismo do Conselho Nacional de Justiça.

Foi uma extraordinária auto-afirmação do poder judiciário como instituição da República. Valorizou seus membros, fortaleceu sua organização, consolidou o perfil de austeridade do sistema judiciário, até mesmo porque, apesar dos números significativos, era proporcionalmente reduzido o número de juízes que o praticavam. Foi muito.

No entanto, foi pouco, porque o abominável vício persiste no Executivo e no Legislativo. O nepotismo se mantém incólume ¿ naturalmente, salvo os casos voluntários em que os titulares são sensíveis ao abuso e não o praticam ¿, à espera que lhe tirem um álibi caviloso.

Alegam que o princípio não está regulamentado e exigem lei específica que debulhe a Constituição, como se o texto necessitasse de tradução. Exigem a desnecessária regulamentação de um texto escrito no melhor vernáculo e que não faz jogo semântico nem reclama exegetas.

O que está escrito, todos, sem discrepância, entendem. Nem há outra forma de compreendê-lo. Ele é auto-aplicável, como entendeu com sabedoria o Conselho Nacional de Justiça, cuja resolução foi o fio da meada de toda essa história. Esta é a hora de generalizar ¿ usando-se a força desse verbo que significa ¿extensão de um princípio a todos os casos a que se pode aplicar¿ ¿ a extinção do nepotismo.

Generalizemos a compreensão de que o artigo 37 é claro. Só não admite quem não quer, pois determina que toda administração pública ¿direta, indireta, fundações e de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade¿.

O Ministério Público Federal está sendo solicitado a denunciar ¿ com base na mesma decisão do Supremo sobre o Judiciário ¿ a prática inconstitucional do nepotismo nos poderes executivo e legislativo.

A AMB, ao tomar a decisão de promover a generalização da condenação do nepotismo, considera que, desta vez, colherá uma decisão unânime, considerando-se a observação do ministro Marco Aurélio, o voto solitário no julgamento do nepotismo no Judiciário, que decidiu pelo ¿não¿ por questões processuais.

Ele não reconhece ao Conselho Nacional de Justiça poderes para ter deflagrado aquele terremoto saneador. Agora, já não haverá esse óbice, mas apenas o principio constitucional da impessoalidade na administração pública, que ele reconhece. Portanto, deve haver unanimidade.

Não há uma explicação plausível para a prática, disseminada desde a Constituinte de 1946, de que se poderiam inscrever claramente princípios polêmicos na Constituição e deixá-los ao sabor de futura regulamentação. A condicionante ¿que a lei regulamentará¿ frustrou avanços, na época considerados modernizadores do capitalismo, como a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Simplesmente viraram letra morta. Nunca foram regulamentados.

Não é certamente a melhor doutrina considerar a Constituição mera pauta para o legislador ordinário detalhar. Pelo contrário, princípios como esses ¿ ¿legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade¿ ¿ do artigo 37 representam, por eles mesmos, pela força do seu significado, sem duas variantes de interpretação, determinação precisa. Até mesmo porque verbalizam regras de moralidade pública amplamente compartilhadas pela sociedade democrática.

Aliás, é pena que seja necessária uma medida judiciária para que eventuais detentores de poder no Brasil, em pleno século XXI, acordem para a realidade. Este país superou todos os anacronismos de nobreza, aristocracia, coronelismo, oligarquias, baixo clero e já não reconhece os privilégios de hereditariedade e nepotismo que um dia ¿ ¿e isso já faz muito tempo¿, como no breque do samba popular ¿ levantou à assembléia dos Estados Gerais, em Versalhes, nos pródromos da Revolução Francesa de 1789.