Título: O RISCO DA IMPUNIDADE
Autor: CARLOS ALBERTO DI FRANCO
Fonte: O Globo, 13/03/2006, Opinião, p. 7

Pela diferença de um voto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de conceder a homicidas, estupradores, seqüestradores e traficantes de drogas o direito ao regime de progressão da pena, em caso de bom comportamento, permitindo-lhes passar do regime fechado para o semi-aberto, foi, no mínimo, arriscada.

O debate teve início há dois anos, quando o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sugeriu a revisão da Lei dos Crimes Hediondos, classificando-a como ¿receituário de uma vocalização conservadora em matéria de repressão à criminalidade¿. O recado do ministro, claramente ideológico, é um escárnio. E a sociedade brasileira, sofrida e desamparada, já começa a se manifestar. Num protesto impressionante contra a farra da impunidade, mais de 1 milhão de assinaturas desabaram sobre o Congresso Nacional. Trata-se de um grito de revolta contra aqueles que teimam em ¿glamourizar¿ a crueldade.

A decisão do STF pode, de fato, devolver às ruas estupradores, traficantes de drogas, assassinos e seqüestradores. A medida, embora minimizada pelas autoridades, é surpreendente e surrealista. Hoje, mais da metade dos presos cumprem pena por crimes hediondos. O tráfico de drogas é, de longe, o primeiro colocado. E está crescendo em progressão geométrica. Com pena mínima de três anos de prisão, o tráfico de drogas poderá ser punido com pena de prestação de serviços à comunidade. As metrópoles brasileiras vivem em clima de guerra civil. Por isso, a decisão do STF manifesta notável autismo. A foto estampada na capa do jornal ¿Folha de S.Paulo¿ (quinta-feira, 9/3) é um dramático atestado da morte da autoridade: soldados do Exército patrulhavam favela de Manguinhos (Rio), enquanto garotos faziam gestos obscenos. Vale um editorial.

O ministro da Justiça, em artigo publicado no jornal ¿O Estado de S.Paulo¿, disse que, por ter sido escrita ¿sob a emoção da violência¿, a Lei dos Crimes Hediondos satisfaz os anseios de segurança da sociedade, mas não coíbe a criminalidade. ¿Essa lei é o mais claro exemplo (...) da legislação do pânico, ou seja, que é feita a partir de grande repercussão¿, escreveu ele, após lembrar que foi por causa da mobilização da escritora Glória Perez, cuja filha foi assassinada por um ator de novela, que o Congresso incluiu o homicídio qualificado no elenco dos crimes hediondos. ¿Não é correto que apenas casos célebres (...) possam definir parâmetros para a política criminal do Estado¿, sublinhou.

A sociedade está em pânico, sim. Mas não se trata de uma paranóia. O cidadão honrado, que paga impostos exorbitantes, é refém do banditismo e da inoperância do governo. Quando Fernandinho Beira-Mar, um delinqüente sob custódia federal, fazia gato-sapato das autoridades subordinadas ao Ministério da Justiça, Thomaz Bastos pediu socorro ao governador Geraldo Alckmin. O bandido foi transferido para um dos presídios de segurança máxima do governo de São Paulo. O ministro garantiu que em poucos meses seria construído um presídio federal e, então, providenciaria a transferência de Beira-Mar. O calendário virou. E não havia nem projeto do presídio. Há alguns meses, finalmente, Beira-Mar deixou São Paulo.

Segundo Thomaz Bastos, casos célebres não devem definir parâmetros para a política criminal do Estado. Tal afirmação é o resultado acabado do clima rarefeito que se respira na Ilha da Fantasia. Sua Excelência, cercado de segurança e conforto, perdeu conexão com o mundo real. Afinal, o caso Glória Perez é uma gota d¿água num oceano cotidiano de homicídios, seqüestros e tráfico de drogas.

Agora, pressionado pelo clamor popular, o presidente Lula deve enviar ao Congresso nos próximos dias um projeto para dificultar a liberação de presos condenados por crimes hediondos. O projeto, que está sendo preparado pela equipe do ministro da Justiça, estabelece prazos maiores para que presos condenados peçam liberdade condicional ou outros benefícios de progressão de regime.

O governo e o Congresso ainda podem remendar esse lamentável episódio. Trata-se de regular de forma bastante rígida a concessão de benefícios para quem cometeu crimes hediondos. Pode-se, por exemplo, aumentar significativamente o período obrigatório de reclusão. O que não se pode é transmitir à sociedade a convicção de que a impunidade foi aprovada pela mais alta instância judicial do país.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO é diretor do Master em Jornalismo.