Título: A favela deixou de ser o endereço da miséria
Autor: Ricardo Neves
Fonte: O Globo, 10/03/2006, Opiniao, p. 7

Nossos diagnósticos dos problemas da sociedade brasileira são todos de natureza apocalíptica, na base do câncer em metástase. Por esta razão, erramos na mão volta e meia em eleições e buscamos profetas e salvadores da pátria mais do que líderes que devam trabalhar uma agenda de prioridades. E daí que aparecem chances para demagogos e oportunistas à espreita.

Os próximos meses de 2006 serão tempos importantes para discutirmos não apenas os nomes das pessoas que devem ocupar a Presidência da República, governos estaduais e demais cargos eletivos. É um tempo para deixarmos de lado desencantos e frustrações com políticos em geral e discutirmos, sobretudo, a coisa-certa-a-ser-feita por aqueles que forem eleitos.

A democracia é um regime eficaz e eficiente quando o conjunto da sociedade consegue ter clareza a respeito de uma pauta -- uma agenda do que julga prioritário a ser feito -- e então delega aos eleitos a responsabilidade de implementar o que se entende como consensual. Quando a sociedade discute ativamente propostas realistas, mais do que ficar escolhendo entre Fulano ou Beltrano, temos a capacidade de influenciar de maneira mais pró-ativa nos destinos da nação.

Quero aqui dar minha contribuição neste sentido. Neste mesmo jornal, fui entrevistado recentemente por apresentar em meu livro "Pegando no tranco: o Brasil do jeito que você nunca pensou" (editora Senac Rio) idéias que são consideradas novas, polêmicas e, para muita gente, provocativas.

O que faço nesse livro é, basicamente, procurar chamar a atenção para o fato de que estamos, como sociedade, respondendo perguntas novas com respostas velhas.

Quer um exemplo? A pobreza. O nosso senso comum é dizer que o Brasil é um país onde predominam os pobres, indigentes e miseráveis. Na prática, o que o nosso senso comum faz é oferecer um briefing para os políticos, independente de partido, para que coloquem como questão número um o combate à pobreza. Olha o Lula quando chegou lá: tacou o Fome Zero como o seu primeiro programa.

Ocorre que as empresas, por suas análises de mercado, começaram a descobrir que o Brasil não é um mar de pobreza, mas um mar de baixa renda e informalidade com ilhotas de riqueza e ilhas, sim, de miseráveis.

De novo: ilhas de pobreza, não um mar de miseráveis. Na prática, o que está sendo descoberto pelas empresas é algo contra-intuitivo do ponto de vista do senso comum. Os estudos de mercado perguntam para as pessoas o que elas têm e o que elas compram, diferentemente dos estudos governamentais, que perguntam para as pessoas quanto elas ganham por mês.

Essas pesquisas de mercado revelam que, mesmo em lugares imaginados como miseráveis, como as favelas do Rio, São Paulo, das capitais etc., os domicílios têm telefone celular, microondas, máquinas de lavar roupa, aparelho de som estéreo em percentuais muito acima do que o senso comum julgava, para não falar da presença quase chegando a 100% de posse de geladeira e TV.

Diversas empresas como Casas Bahia se especializaram em vender para a baixa renda, que o senso comum insiste em chamar de pobre. A favela não é mais o endereço da miséria. E isso estão descobrindo as grandes multinacionais, que estão enviando os seus jovens gerentes para morar em favelas por um período de alguns meses para estudar os hábitos de consumo e estilo de vida das pessoas.

O objetivo é para que esses jovens gerentes saiam de lá com planos de negócios para as mais variadas necessidades da população de baixa renda, de serviços financeiros a planos de saúde, de aparelhos eletrodomésticos a material de autoconstrução.

Economistas de governo e de instituições ligadas ao estudo da pobreza continuam calibrando programas assistenciais a partir da pergunta "quanto você ganha por mês" e estimando que temos 60 milhões de miseráveis. Não temos estes números apocalípticos.

Outras pesquisas, sobretudo da iniciativa privada, trazem boas notícias. Temos muito menos: no máximo 16 ou 17 milhões. E para tratar estrategicamente essa pobreza em ilhas é necessária uma focalização de raio laser; não um holofote de megaprogramas assistencialistas, ineficientes e que desperdiçam recursos importantes e que, além disso, viciam perigosamente uma geração de baixa renda tornando-a dependente de subsídio a fundo perdido.

O grande problema é a informalidade. Essa é uma nova pergunta que programas assistenciais não podem dar resposta correta. Na informalidade estão 60% dos trabalhadores brasileiros. Na informalidade estão 10 milhões de micro e pequenas empresas dentre o total de 15 milhões de empresas do Brasil.

Assim estão porque tributos são extorsivos, porque a burocracia é complicadíssima e porque não estão claras as vantagens que o governo dá em contrapartida. Além disso, estão na informalidade 13 milhões dos 52 milhões de imóveis residenciais do país que representam um capital morto para indivíduos e para a sociedade.

A informalidade e sua irmã degenerada -- a criminalidade -- são as novas questões que devem ir para o topo das prioridades da sociedade nesta eleição de 2006. A informalidade, essa sim, é um câncer em metástase que pode desestruturar as perspectivas da sociedade brasileira nos tempos à frente.

RICARDO NEVES é escritor. E-mail: ricardoricardoneves.com.br.