Título: SEM IMUNIDADES
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 11/03/2006, O País, p. 4

Os problemas jurídicos envolvendo o processo do ex-deputado José Dirceu, e, recentemente, as decisões do plenário da Câmara, absolvendo os deputados condenados pela Comissão de Ética, fizeram com que a extinção pura e simples dessa Comissão começasse a ser pensada. Primeiramente, pensou-se em substituí-la pela Comissão de Constituição e Justiça, com o apoio de ministros do Supremo, para evitar problemas jurídicos nos processos. Depois, os próprios membros da comissão ameaçaram uma renúncia coletiva, em protesto contra o seu esvaziamento. Mas o que está sendo discutido mesmo entre os parlamentares é uma maneira de evitar que qualquer órgão da própria Câmara possa julgar seus membros.

O ex-ministro José Dirceu, em sua despedida da Câmara depois de cassado, levantou essa questão, ressaltando que nenhum outro parlamento do mundo usava esse método. Não é exatamente verdade, pois alguns parlamentos, como os do México, Uruguai e Coréia do Sul, atuam da mesma forma que o brasileiro. Mas os parlamentos dos países mais avançados, como os Estados Unidos e a Inglaterra, não têm em seu regimento interno a figura da cassação de mandato.

A decisão colegiada no plenário da Câmara parece ser a menos propícia a um julgamento justo, até mesmo pelo voto secreto, que acoberta o corporativismo. O temor de que o corporativismo impeça que as punições sejam aplicadas, ou que force a cassação dos parlamentares que não caiam nas graças de seus pares, está mais do que justificado.

O caso atual é emblemático. O ex-deputado Roberto Jefferson, que denunciou o esquema de corrupção do qual ele foi beneficiário, foi julgado e condenado por seus pares, muitos deles acusados de estarem envolvidos no esquema de mensalão. E muitos outros, agora se sabe, não haviam sido denunciados na ocasião, e nem o foram até agora, mas certamente gostariam de se ver livres daquele parceiro incômodo que tanto sabia das maracutaias que tantos cometeram.

O ex-ministro José Dirceu, embora claramente fosse o coordenador do esquema dentro do governo, acabou sendo cassado sem provas materiais, argumento que serviu para absolver vários denunciados. Nesse caso, o julgamento político da Câmara serviu certamente para um acerto de contas político com o arrogante ex-todo poderoso do governo. Essa distorção de critérios está fazendo com que ele pense em recorrer ao Supremo novamente, desta vez para reaver seu mandato.

Uma emenda constitucional que começa a ser discutida pela bancada do PDT através do líder Miro Teixeira prevê que o Conselho de Ética remeterá diretamente para o Ministério Público os processos que envolvam crimes de parlamentares. Durante o andamento do processo, os deputados e senadores envolvidos ficariam com seus mandatos suspensos e perderiam a remuneração. Condenados, perderiam aí sim o mandato. Absolvidos, retornariam ao Congresso e receberiam os atrasados.

O Ministério Público só poderia processar os envolvidos por meio do Supremo Tribunal Federal, em rito sumário. Juntamente com essa alteração, cairiam todas as imunidades que ainda restam aos parlamentares, com exceção da de não poder ser processado por palavras e atos no exercício do mandato.

Essa é uma longa trajetória para transformar os parlamentares brasileiros em cidadãos comuns, sujeitos às leis do país. Anteriormente, um parlamentar só podia ser processado com a autorização do Congresso, que permanentemente recusava o pedido, fosse por motivações políticas ¿ como o pedido, recusado, dos militares para processar o deputado Márcio Moreira Alves, que resultou no fechamento do Congresso ¿ fosse por crime comum.

Hoje, o processo no Supremo pode acontecer, mas pode ser suspenso se assim a Câmara ou o Senado decidirem. A imunidade parlamentar já está muito reduzida, mas deputado ou senador só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável.

Os processos por quebra de decoro parlamentar continuariam sendo julgados pelas comissões da Câmara e do Senado, e há quem defenda que os órgãos do Congresso devam apenas instruir os processos por quebra de decoro e enviá-los para o Supremo para uma decisão.

Outros consideram que, depois de definir claramente o que é quebra de decoro parlamentar, tudo o que não envolver crime deve ser julgado pelo regimento interno das duas Casas, o que envolve discussão mais delicada, a necessidade de sair desse impasse provocado pelo caráter radical das punições do Conselho de Ética, que só prevêem ou a cassação do mandato ou a absolvição.

A cassação de mandato ficaria restrita aos que cometeram crimes, como nos casos de hoje de mensalão e caixa dois de campanha eleitoral. Esses seriam julgados pelo Supremo. Os demais, como processos por ofensas a colegas, ou rasgar documentos em plenário, e outras transgressões ao decoro e à ética parlamentar que teriam que ser definidos no regimento interno, receberiam penas que variariam de advertência à suspensão do mandato.

A suspensão dos direitos políticos por oito anos, como existe hoje para o cassado, pode significar o fim da vida política para quem sofre a punição na idade do ex-deputado José Dirceu, por exemplo. Há a sugestão de que aquele que tiver o mandato cassado não possa disputar o próximo pleito.Todas essas mudanças seriam introduzidas em uma futura reforma política, a ser definida pelo próximo Congresso a ser eleito este ano.