Título: Perigos à espreita
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 11/03/2006, Economia, p. 26

Quem viveu o que vivemos tem medo do Exército nas ruas. Mas agora é tão outro o tempo em que vivemos que é melhor deixar de lado velhos temores e pensar nas angústias atuais. Imagine se o Exército não reagisse diante de tão descarada provocação? Por outro lado, 1.500 homens armados nas áreas pobres da cidade põem em marcha uma dinâmica incontrolável. Os perigos são enormes, como se viu esta semana. O recuo é desmoralizador.

É assombroso pensar em cada ângulo deste drama. Soldados treinados como defensores da pátria, sendo hostilizados em sua própria terra, devem estar com o moral baixo. Promotores entraram com ação cautelar para tirar o Exército das ruas. Nas Forças Armadas, só recentemente começou a mudar a idéia de que os soldados nada têm a fazer nos conturbados centros urbanos. Por causa desta mudança de idéia, foi criada a Brigada de Infantaria Leve ¿ Garantia da Lei e da Ordem, com o objetivo de treinar os soldados especificamente para ações urbanas.

Forças Armadas não são polícia, mas não podem ficar indiferentes diante do fato de que o Estado perdeu soberania sobre partes do território. Quando acontece o que nos acostumamos a ver no Rio, áreas da cidade em que o governo não pode ir a não ser com salvo-conduto, é porque não se trata mais de um caso de polícia apenas.

Por negligência, o Estado tem estado ausente das áreas de periferia das grandes cidades há muito tempo. Isso não é novo, nem exclusividade do Rio. Mas no Rio de Janeiro, hoje, o Estado não pode entrar nem que queira. Há muito tempo, os traficantes têm feito provocações à polícia. Agora escalaram e foram atacar o Exército. Como os bandidos estão muito bem armados, imagina-se que não atacaram o quartel atrás dos fuzis e da pistola. Foram para romper mais uma das tantas barreiras que invadem cotidianamente e testar novos limites do seu poder. Foram provocar. O Exército reagiu.

Mas é preciso discutir qual é a forma mais eficiente de reagir à provocação dos traficantes. Os manuais militares ensinam que uma operação terá menos risco se for deflagrada com planejamento estratégico. Espalhar jovens pouco treinados e assustados pelos morros cariocas com armamento pesado na mão, enfiados em ruelas cheias de população civil indefesa, pode ser o começo de um grande desastre.

O temor hoje é este. Não o velho medo de que tenham saído às ruas como atalho para o Planalto. Isso é tão obsoleto que ninguém mais pensa. O problema é eles não saberem por que mesmo saíram dos quartéis e onde querem chegar.

Há vários riscos de desastre à espreita. O pior deles, uma tragédia civil ¿ que Deus nos livre dela. Em certas cenas, ela parece perigosamente próxima. Mas há também a ameaça de desmoralização. Os soldados têm sido hostilizados pela população e atacados pelos bandidos: a Operação Asfixia pode ir aos poucos tirando o oxigênio do próprio Exército. É bom lembrar algumas lições militares. Os bandidos estão em terreno que conhecem e têm vínculos com a população, construídos pelo medo ou pela distribuição de favores. O Exército é estrangeiro por lá. A cada dia sem que os fuzis sejam encontrados, os bandidos estão demonstrando a sua força e os militares ficam cada vez mais encurralados. Eles mesmos escolheram a armadilha quando disseram que só sairão quando recuperarem aquelas específicas armas. Qualquer coisa menos que isso é derrota.

A queda da criminalidade é um alívio para a sociedade e ilustra o quadro de carência de autoridade que se vive no Rio. Mas não tira as Forças Armadas do córner em que estão: ou mostram as armas recuperadas ou se enfraquecem; ou fazem esta operação sem atingir inocentes, ou alimentam a animosidade da população contra elas, o que significa aumentar o poder dos bandidos.

As Forças Armadas brasileiras têm se queixado de falta de recursos, de meios, de equipamentos para se manterem modernas e eficientes. Em 2002, o então candidato Lula foi muito aplaudido numa reunião com militares quando prometeu o impossível: aumentar os gastos militares e reequipar as Forças Armadas. Era demagogia. Ele falava sem nem ter olhado os dados e verificado que, com toda a penúria, elas têm o segundo maior orçamento da República. Os militares brasileiros contestam as comparações internacionais, dizendo que as estatísticas comparam bananas e laranjas, mas todas elas dizem o mesmo: o Brasil não gasta menos que outros países. Entre países em desenvolvimento de médio porte, só perde para os altamente populosos, como China e Índia. Mesmo assim, os oficiais militares têm dito que não conseguem, com o que recebem, cumprir suas funções constitucionais. Poderão manter-se nas ruas do Rio de Janeiro por ¿tempo indeterminado¿, como têm dito?

A ida para o Haiti representa, na visão militar, um ganho objetivo. No cálculo dos militares brasileiros, os soldados estão recebendo da ONU para realizar operações que, na prática, representam treinamento. Estão sendo treinados em situação real e parte da operação é financiada por dinheiro das Nações Unidas. A operação no Rio já é o primeiro teste de usar estes retornados do Haiti em situação real no Brasil.

Hoje bandos armados impõem sua lei e ordem, ou seu desrespeito à lei e sua desordem, às populações civis do Rio. Episódios em que a sociedade fica encurralada pelos bandidos já estão se banalizando. Não fazer nada é contratar uma ampliação do território sob o controle dos bandidos. Reagir intempestivamente sem avaliar a força do inimigo, sem ter estratégia e tática, pode ser o início de um grande atoleiro. As Forças Armadas devem recorrer aos seus melhores cérebros. Esta é a única arma certeira.