Título: LIMITES DA LIBERDADE QUANDO O ASSUNTO É O SAGRADO
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 11/03/2006, O Mundo, p. 34

Representantes de três religiões, cartunista e antropólogo debatem no GLOBO as reações provocadas pelas charges de Maomé

Reunidos pelo GLOBO para discutir as charges de Maomé e a reação islâmica a eles, três dos cinco debatedores ressaltaram que a liberdade de expressão deve ser acompanhada de responsabilidade e respeito às religiões. Essa opinião foi compartilhada pelo rabino Nilton Bonder, pela teóloga cristã Maria Clara Bingemer e pelo antropólogo Roberto DaMatta. Já o xeque muçulmano Ahmad Mazloum acredita que há conceitos que precedem a liberdade de expressão e esta não pode justificar desrespeito a símbolos religiosos. O cartunista Chico Caruso defendeu o direito de os chargistas dinamarqueses publicarem seu trabalho.

Os cinco especialistas condenaram as reações violentas aos desenhos no debate ¿As charges de Maomé. Respeito à religião ou liberdade de expressão?¿, da série Encontros O GLOBO, diante da platéia de 300 pessoas reunidas quinta-feira no auditório do jornal. O debate teve como mediador o editor de opinião do GLOBO, Aloizio Maranhão.

O sentimento de perplexidade no Ocidente devido à reação muçulmana à publicação das charges é uma das grandes discussões atuais. Posições que variam entre a defesa dos princípios fundamentais da sociedade democrática e laica européia desde o Iluminismo e a firme exortação ao respeito aos símbolos sagrados, passando por discursos xenófobos da extrema-direita e pela destruição de representações diplomáticas européias em países de maioria islâmica feitos por extremistas às vezes apoiados por governos ditatoriais, têm sido expressadas com igual veemência.

O cartunista Chico defendeu não apenas a publicação das charges, originalmente feita pelo jornal dinamarquês ¿Jyllands-Posten¿, como também elogiou a qualidade dos trabalhos.

¿ Os desenhos são todos muito bons. São desenhos que refletem a época de hoje ¿ disse o chargista, que reconheceu, no entanto, que assuntos deste tipo são complexos. ¿ Não apenas a religião, mas a cultura dos povos é um terreno minado.

Xeque afirma que charges dão idéia errada do Islã

O xeque Mazloum deixou claro que não concordou com a publicação das charges. Ele afirmou que os desenhos, como foram feitos, transmitem uma idéia errada da religião islâmica, e que esta informação seria apreendida pelo público. Desta forma, a liberdade de expressão é aceitável, e não se chocaria com a religião, caso seja desprovida de insultos.

¿ Os muçulmanos, de uma maneira geral, repudiaram estas caricaturas porque mexeram com um sentimento, com um símbolo religioso e com aquele que é talvez o centro da religião islâmica ¿ disse ele. ¿ A liberdade de expressão precisa, em resumo, de responsabilidade e respeito às culturas.

Perguntado como se poderia equilibrar a liberdade de expressão com o respeito, uma vez que desenhos são interpretados pelo observador ¿ que às vezes enxerga insultos sequer imaginados pelo chargista ¿, o xeque respondeu que, se o desenho em questão for uma das charges de Maomé, ¿é blasfêmia.¿

Ele disse que as lideranças islâmicas pregam o equilíbrio, mas afirmou que há limites:

¿ Claro que o líder religioso não vai ensinar fiéis a aturarem este tipo de zombaria, de sacanagem em relação a símbolos religiosos.

O xeque disse que não se deve julgar ¿certas pessoas ou ações¿ pois por elas ¿podem fazer algo num momento crítico em que se viram ofendidas.¿ Para ele, não é possível manter o equilíbrio após uma série de insultos.

Já o rabino Bonder disse que informações subliminares às charges em si têm um papel fundamental na crise atual. Ele deu como exemplo uma charge feita por Chico, na qual o líder palestino Yasser Arafat foi retratado crucificado.

¿ O subliminar é o que é fora do controle. Nas charges do Arafat não havia nenhum problema do ponto de vista político. Há uma pertinência política. Mas há um subliminar que foge à realidade do momento político e expõe uma questão subliminar antiga. Ela foi usada por uma propaganda de forma muito violenta. Num país em que a gente tem o verbo judiar que significa aquele que faz maldade, na qual o judeu foi aquele que ¿judiou¿ de Jesus, quando aparece aquilo acho que remete a uma série de mensagens complexas.

Rabino diz compartilhar do incômodo islâmico com charge

O cartunista explicou que sua intenção não fora essa e que encontrara inspiração numa foto em que Arafat parecia fragilizado. Bonder disse também ter ficado preocupado com as charges dinamarquesas.

¿ Eu compartilhei este incômodo do mundo islâmico no sentido de perceber um pouco a dificuldade que o mundo secular tem de respeitar o sagrado.

Antropólogo chama crise de embrulhada sociocultural

Porém, Bonder lembrou que, por vezes, o mundo islâmico incorre em situações semelhantes ao problema apontado nas charges. Ele disse que quando começou a aprender árabe, há 30 anos, as apostilas usavam termos ofensivos ao Exército de Israel. Se isto poderia ser explicado pelo momento político, o mesmo não se aplica à imprensa árabe, onde ¿é comum hoje caricaturas contra judeus¿.

¿ Não vai ser possível nunca que um sistema julgue o outro. É muito importante que haja uma crítica, uma tentativa de olhar de dentro das próprias culturas. Tem que haver um mecanismo de se questionar ¿ disse Bonder. ¿ Quando há a destruição das Torres Gêmeas ou acontece a explosão no casamento em Amã ou uma mesquita é detonada, o mundo islâmico não sai às ruas. O nome do profeta está sendo usado de uma modo violentamente herege, na minha concepção.

O antropólogo Roberto DaMatta chamou a crise de ¿embrulhada sociocultural¿. Frisando que o outro lado da moeda da construção das identidades é usá-las ¿como medida para todas as outras coisas¿, ele explica que assim surge o etnocentrismo.

DaMatta lembrou também que é preciso entender o contexto das sociedades árabes, que ¿foram transformadas em sociedades nacionais pelos ingleses e franceses¿ devido ao colonialismo.

Para ele, ¿quem tem valor, tem limite, quem acredita em alguma coisa, tem fronteiras. Morais e éticas.¿ Ele disse que o editor do ¿Jyllands-Posten¿, numa carta em que explicou a publicação das charges, falou que o jornal também tem limites e não publica pornografia, por exemplo. Para DaMatta, isso é contraditório.

¿ O que é princípio e tradição na Dinamarca, no mundo islâmico é tabu. O etnocentrismo é visível. O que eu faço é ciência, o que você faz é ideologia.

Afirmando que o mundo é divido em esferas política, econômica e religiosa, DaMatta disse que, para o Ocidente, a religião foi derrotada pela política, que por sua vez foi derrotada pela economia.

¿ No Oriente as coisas mudam. A política e a economia estão contidos na esfera religiosa.

Para ilustrar que o Ocidente hoje é dominado pelo que Rousseau chamou de religião cívica, DaMatta perguntou qual seria a reação da sociedade americana se fosse feita uma charge com Abraham Lincoln sendo sodomizado.

¿ Esse é o nosso sagrado. Resumiu-se a cívico e dinheiro. E achamos que é a partir do controle, do domínio da sabedoria destas duas esferas é que vamos construir o paraíso nesse mundo.

Já a teóloga cristã Maria Clara Bingemer preferiu tentar entender a reação muçulmana.

¿ Toda experiência religiosa mexe com coisas muito viscerais dentro do ser humano, por mais secularizado que esteja o Ocidente, por mais que se tenha decretado o fim da religião e a morte de Deus. Essa experiência mexe com coisas muito profundas, que têm a ver com a paternidade, a maternidade, o sentimento de filiação, de origem, a experiência de ser criado, de ser criatura. ¿ disse ela. ¿ Tudo isso para dizer que algo que atinge um núcleo muito central e importante dentro desse sistema de crenças mexe com o que há de mais profundo e visceral em nós. E é como se nosso pai, nossa mãe, figuras dessa importância, fossem atacados.

Teóloga diz que mexer com religião é terreno delicado

Dirigindo-se às pessoas que não têm ¿adesão religiosa¿ e que lutam pela paz, ela disse:

¿ Todo cuidado é pouco ao se pisar nesses terrenos delicados. E certamente mexer com a religião dos outros é um dos terrenos mais delicados que se pode encontrar.

DaMatta disse, apesar de ter tentado evitar o termo, que temos de ¿pisar em ovos¿, tal a delicadeza da situação, pois ¿nossas responsabilidades aumentaram.¿

Chico discordou e defendeu outras formas de organização social em que o papel da religião é que é limitado, e não a liberdade de expressão:

¿ Ver a religião como uma etapa do desenvolvimento da cultura dos povos, uma etapa mais próxima à infância. Quando a gente tem medo de tudo, há ameaças e a gente precisa de um pai. E à medida que o tempo passa a gente vai crescendo e vai percebendo que, na verdade, nós somos nossos pais, temos que cuidar da nossa liberdade, de nossos filhos, de nossa vida. Que as coisas estão nas nossas mãos e a gente desenvolve outros meios, podem ser os meios da política, da democracia, no mundo ocidental, ou podem ser outros.