Título: Família fica sob a mira de tanque
Autor: Vera Araujo
Fonte: O Globo, 12/03/2006, Rio, p. 22

Moradores de áreas cercadas pelo Exército relatam seus dias no front

Em 2003, quando cumpria o serviço militar obrigatório no Exército, X., sempre sentia um frio na espinha quando passava pelos empoeirados urutus do quartel onde servia, mas respirava aliviado: ¿pensava que eles nunca sairiam do lugar¿. Estava enganado. Na última terça-feira, ele acordou sob a mira de um canhão no Morro da Mangueira, onde há três tanques do Exército, que há nove dias procura por dez fuzis e uma pistola roubados de uma de suas unidades em São Cristóvão. O clima é tenso também em outros morros. Durante a madrugada de ontem, moradores da Providência e imediações ouviram barulho de tiros e viram balas traçantes cruzando os céus. Os tiros tinham origem no alto da favela.

¿ De repente você acorda com um canhão apontando para sua casa. Já pensou se um negócio daquele dispara e explode a minha casa? ¿ disse X., de 21 anos, desempregado, que mora com a mulher, um filho de um ano e mais sete parentes num sobrado de três andares na Mangueira.

Ao se descobrir alvo do Exército, X. mudou-se para o primeiro andar da casa, ainda em obras, em busca de segurança:

¿ Preferi dormir na poeira a correr o risco de ser atingido. A gente nunca sabe ¿ disse o ex-recruta, cuja casa é freqüentemente atingida por disparos da Polícia Militar. Uma perfuração de fuzil embaixo da janela confirma sua sina.

¿ O maior medo do morador é o confronto. Pior do que o tanque, que só dispara por um descuido, é o Caveirão (carro blindado) do Bope (Batalhão de Operações Especiais da PM). Todo mundo sai das ruas ¿ comentou o morador.

Moradores mudam hábitos

A presença do Exército fez os moradores mudarem de hábitos. X. preferiu adiar o churrasco onde iria comemorar o aniversário de um ano do filho, neste fim de semana, por temer tiroteios.

Seu vizinho, o corretor Y. também lamentou ter ficado, como X., sob a mira do urutu durante dois dias, mas sabe que os militares estão em missão:

¿ Tinha uma vista maravilhosa e, de repente, vi um canhão da janela. É triste. O que eu, minha mulher e meus quatro filhos temos a ver com essa guerra? ¿ comentou Y.

O presidente da Associação de Moradores do Morro da Mangueira, José Roque Ferreira, de 57 anos, diz que a única preocupação da comunidade é que tiroteios, como os que provocaram a morte do estudante Eduardo dos Santos, de 16 anos, no Morro do Pinto, na segunda-feira, se repitam por lá:

¿ A comunidade está em paz. Não somos contra ou a favor do Exército. Até agora tudo correu bem por aqui.

Na Mangueira, os moradores tentam até ser gentis. Roque conta que uma vizinha chegou a oferecer água aos militares, mas que eles têm ordens do Comando Militar do Leste para não aceitarem nada. Já no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, onde os traficantes têm provocado os soldados, chamando-os para o confronto, os moradores foram orientados a não se relacionarem com o Exército.

Em outras favelas ocupadas pelo Exército, moradores temem pelo futuro. No Jacarezinho, W. elogiou o cerco, mas disse ter medo de como ficará a situação quando as tropas partirem. Funcionário de uma oficina, disse que os roubos de carro diminuíram nos últimos dias.

¿ Nunca vi isso aqui tão tranqüilo. Não está acontecendo nada. O problema vai ser quando o Exército for embora. A bandidagem vai querer tomar tudo ¿ disse W.

O presidente da Associação de Moradores do Jacaré, Sérgio da Silva Baltazar, conta que o Exército chegou a ajudar as crianças a atravessarem a Avenida Álvares de Azevedo, que divide as comunidades do Jacaré e Jacarezinho, no caminho da escola.

¿ Eles até socorreram um pedreiro que sofreu um acidente de trabalho. Eles levaram para o posto médico e, depois para o hospital ¿ lembrou.

Apesar dos momentos em que os soldados são solidários, os moradores das favelas ocupadas não escondem o desconforto com as revistas feitas pelos soldados, que não poupam crianças, idosos ou mulheres. Eles também reclamam de determinadas ações do Exército: no Complexo do Alemão, um jipe com militares em posição de tiro costuma percorrer repetidas vezes a Rua Canitá, onde a maior parte das tropas que participam da ocupação do Morro da Fazendinha ficou baseada. Por causa das incursões, a rua, bastante movimentada em situações normais e famosa pelo ¿feirão das drogas¿ que acontece mais adiante, na Vila Cruzeiro, tem ficado deserta.

Apoio da PM aumenta tensão

Para os moradores, os momentos de maior tensão acontecem quando a PM aparece para apoiar os militares. Na tarde de quinta-feira, quando dois carros da PM circulavam pela Rua Canitá, bandidos falaram pelo rádio para o Exército se afastar, pois iriam atirar contra os policiais. O jipe do Exército, que estava indo em direção aos veículos da polícia, foi orientado a voltar. Nenhum tiro, no entanto, foi disparado.

Os moradores do Morro da Providência são os que mais têm sofrido com a guerra entre traficantes e militares. Depois da morte do estudante, o clima ficou insustentável na favela. Os panfletos distribuídos pelo Exército pedindo que os moradores denunciem o esconderijo das armas acabaram na lata do lixo. A presidente da associação de moradores da favela, Márcia Regina Alves, de 45 anos, reclama que perdeu o direito constitucional de ir e vir:

¿ Até crianças de seis anos são revistadas. Eles interditaram a quadra onde os jovens brincam e proibiram idosos de sentarem nos bancos da praça. O toque de recolher é às 20h. Eles têm que deixar o morro.

Na Providência, escolas não funcionaram por falta de alunos. Os pais ficaram com medo de pôr em risco a vida dos filhos. O mesmo ocorreu no Morro do Alemão e até na Mangueira, apesar da aparente calma. Estudantes que saíam da escola na última quarta-feira passavam pelas barricadas de areia montadas na Avenida dos Democráticos pelos militares que estavam em Manguinhos para se proteger de tiros.