Título: ENOCHATO¿ ATRAPALHA FESTA DA INDÚSTRIA DO VINHO
Autor: Paula Autran
Fonte: O Globo, 12/03/2006, Rio, p. 35

Para importadores e sommeliers, pseudoconhecedores da bebida e regras para degustar impedem aumento do consumo

A polêmica cairia bem com uma taça. Mas para evitar os inconvenientes ¿enochatos¿ ¿ aqueles aspirantes a enólogos que não se cansam de derramar seus pseudoconhecimentos sobre vinhos em toda mesa em que se sentam ¿ corre o risco de ser regada a cerveja ou até a refrigerantes. Segundo importadores e conhecedores da bebida de uva fermentada, a moda que fez aumentar seu consumo acabou criando monstros que agora ameaçam derrubar os patamares de venda alcançados na última década. Eles estão entalados na garganta não só de simples admiradores do vinho, mas até de alguns sommeliers e importadores.

De acordo com Loiva Maria Ribeiro de Mello, economista e pesquisadora da Embrapa, no estudo ¿Produção e comercialização de uvas e vinhos - Panorama 2004¿, o consumo per capita de vinhos no país ¿ que em 2000 chegou a 1,89 litros por ano ¿ baixou para 1,68 litros em 2003 e ficou em 1,76 litros em 2004. Para entendedores como a sommelier Deise Novakoski, do restaurante Eça, que tem mais de 20 anos de degustações no currículo, apesar dos cursos para iniciantes, está difícil conquistar novos consumidores:

¿ Precisamos desmontar a chatice do ¿enochato¿, que põe em risco aquilo que demoramos 20 anos para construir. A divulgação dos vinhos foi tamanha que possibilitou o surgimento deles. Agora corremos o risco de eles ajudarem o consumo a cair. Beber vinho não é para dar trabalho e sim dar prazer.

Luiz Eduardo Arroxellas de Carvalho, diretor comercial da importadora Impexco, a maior do Rio, faz coro. E acrescenta que o consumo está se estagnando em grande parte porque o vinho dá medo.

¿ É claro que a queda do consumo se deve a vários fatores, entre eles o econômico. Mas um dos grandes motivos é o excesso de regras e formalidades em torno da bebida. Nos restaurantes, muitas vezes as pessoas ficam até com vergonha de pedir uma garrafa ¿ diz ele, atribuindo aos ¿enochatos¿ uma boa parcela desta conta. ¿ Estava numa festa para cerca de cem pessoas quando um destes ¿especialistas¿ puxou do bolso um termômetro e, depois de colocá-lo na taça, disse que não o beberia porque estava na temperatura errada. Claro que se fosse um vinho especial, o ideal seria tomá-lo na temperatura certa. Mas era uma festa e o vinho era comum. Isto é chatice!

Não por acaso, em seu último catálogo, a Impexco adotou o slogan ¿liberte-se das regras, beba vinho simplesmente¿. E criou uma espécie de joguinho de cartas em que os bebedores são convidados a adivinhar os aromas de nove vinhos da chilena Canepa e da argentina Trapiche, para tornar o consumo mais prazeroso. A campanha ¿Prazer e saber¿ era para ter durado até o Natal. Mas o sucesso foi tanto que a promoção foi mantida por tempo indeterminado.

¿ As pessoas deixam de beber porque temem não saber cumprir as formalidades. Se você souber das regras, ótimo! Se não, peça o que você gosta. O que é que tem comer carne acompanhada de vinho branco, se é do seu gosto? A gente não quer quebrar regras, quer apenas que elas não sejam impostas ¿ acrescenta Luiz Eduardo.

O economista Joaquim Seabra adoraria que a tal ditadura do consumo do vinho acabasse. Mas espera sentado em casa, apreciando sozinho os vinhos tintos que guarda numa pequena adega, bem gelados:

¿ Sempre gostei de vinho, até por influência do meu avô português. Mas comprei uma adega para trinta garrafas e deixei de beber em restaurantes porque sempre gostei deles gelados. Também detesto aqueles copos enormes, até porque sou desastrado. Se não quisessem me corrigir, beberia muito mais. Mas para evitar me aborrecer, quando saio tomo cerveja ou refrigerante.

Sobrinha de Deise, a engenheira Laura Mattos até tenta conhecer mais sobre a bebida que tanto gosta para melhor aproveitá-la. Mas defende o direito de quem pensa diferente:

¿ Tenho uma amiga que gosta de vinho alemão doce. Então deixa ela tomar, ué! Acho que por causa destas cobranças, o chope acaba sendo mais fácil.

Segundo Loiva, que é de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, o consumo do vinho tem que ser desmistificado.

¿ Qual o melhor vinho? É o de sua preferência. Por que na Argentina se consome tanto? Porque lá se bebe até misturado com água. E daí? As regras têm que ser abolidas. O que existem são critérios de uso ¿ defende ela.

Seu colega Mauro Celso Zanus, engenheiro agrônomo, pesquisador da área de enologia da Embrapa e diretor de degustação da Associação Brasileira de Enologia, concorda. Mas acrescenta que ainda não é possível medir a magnitude dos efeitos dos metidos a entendedores da bebida e suas cobranças quanto ao melhor jeito de consumi-la.

¿ Acho que deve influenciar sim. E espero que os pesquisadores possam mensurar a interferência da associação do vinho ao esnobismo como fator de inibição do consumo ¿ diz ele, atribuindo à renda, no entanto, a principal causa do afastamento do consumidor brasileiro.

Para ABS, `especialistas¿ não são únicos culpados

Já Ricardo Farias, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS) ¿ que oferece cursos para duas turmas de dois em dois meses e forma 750 alunos por ano ¿ culpar os ¿enochatos¿ pelos percalços do mercado é exagero.

¿ Nas aulas, a gente até chama a atenção para a ¿enochatice¿. O ¿enochato¿ inibe as outras pessoas da mesa sim. Mas não acredito que o mercado esteja estabilizado por causa disto, e sim por fatores climáticos, econômicos e culturais. No caso do Rio, onde faz calor, a bebida mais popular é o chope gelado ¿ explica Ricardo, acostumado a encontrar os tais ¿especialistas¿ ¿ Tem gente que leva taça para restaurante. Uma cena que costuma me chamar a atenção é a das pessoas que ficam rodando a taça. Não é preciso. Você cheira uma vez e a gira um pouco para liberar novos aromas. Só isto. Também tem os que encontram os aromas mais estapafúrdios. Mas a temperatura correta, acho que as pessoas têm que exigir sim.

De acordo com ele, quem faz um curso, hoje a R$300, dá o primeiro passo no mundo dos vinhos. Mas é como se fosse o curso primário. Para aprofundar conhecimentos, a ABS também oferece cursos complementares, mais avançados.