Título: Flagrantes reais
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 12/03/2006, Economia, p. 38

Tente ter em mente as notícias da semana passada: Exército nas ruas do Rio; deputados tomando decisões que aumentam a desmoralização do Congresso e a desconfiança do cidadão na representação política; militantes destruindo um centro de pesquisa de empresa sem qualquer motivo aparente e sendo insuflados por lideranças com estreitas ligações com o governo; um general fazendo retornar um avião com a ajuda da agência reguladora, que, por sua vez, é controlada também por militares.

Uma pessoa menos informada sobre o Brasil pode achar que se está à beira de um colapso institucional. Como sabemos que o risco de coisas como um golpe de Estado está afastado, temos que aprender a ler os novos perigos que estão escritos e contratados em desatinos como estes que nos acontecem.

Traumas políticos, como o que houve no Brasil no ano passado, com descoberta de redes de corrupção já ocorreram em outros países democráticos. Só para falar dos tempos recentes, a Itália, a Alemanha, o Peru viveram episódios marcantes de financiamento ilegal de campanhas. Em todos os casos, houve punição de culpados. No Brasil, até agora, houve a cassação de quem denunciou e de um ex-todo-poderoso da República que amealhou inimigos com seus maus modos.

Na posição de pizzaiolo-chefe, o presidente da República repete que o mensalão não foi provado e isso passa a ser o novo mantra dos seus áulicos. Houve sim. Houve o pagamento a deputados da base, sacado por seus funcionários ou parentes. Eles foram pagos em bancos, em espécie, e há, portanto, documentação da identidade de todos os sacadores. Parte do dinheiro foi distribuída em quartos de hotéis a políticos pela diretora da agência de publicidade com fartos contratos com o governo e estreitas relações financeiras com o partido do governo. O publicitário da campanha presidencial confessou ter recebido dinheiro de caixa dois em contas não declaradas no exterior. O tesoureiro do partido do governo confessou o uso de caixa dois. O partido oficial mentiu à Justiça Eleitoral. Há fitas gravadas, depoimentos, confissões e provas documentais.

Os políticos foram atingidos por uma amnésia contagiosa e já pluripartidária. É bom lembrar aos esquecidos que o que foi exibido diariamente, por televisão, rádio e jornal a todo o país, durante meses, foi o mais espantoso caso de corrupção já detectado no Brasil. Ficando todos impunes, será impossível evitar a descrença na representação política. Os políticos brasileiros não deveriam apostar no colapso da memória coletiva. Se continuarem agindo com tanta leviandade estarão minando as bases da, duramente conquistada, democracia brasileira. A conta pode não bater agora, mas ficará na nossa história nos condenando.

No ano passado, procurei nos casos internacionais de corrupção alguma regra comum na evolução de escândalos desse tipo. O caso mais conhecido é o da Itália, em 92, detonado pela prisão em flagrante de Mário Chiesa, do Partido Socialista, recebendo propina. A investigação levou a um esquema de financiamento ilegal de campanha. Atingiu 500 procuradores, vários ex-ministros, cinco ex-primeiros-ministros, e no fim foram indiciadas por corrupção 2.392 pessoas. Em 95, houve um novo caso, na mesma Itália, e foram processadas 2.700 pessoas. O segundo caso conhecido foi na Alemanha, quando o chanceler Helmut Kohl foi atingido. O tesoureiro do CDU, partido dele, foi apanhado fazendo caixa dois. Kohl admitiu ter recebido US$1 milhão não contabilizado, defendeu-se dizendo que não usou para fins privados, mas os alemães o varreram da vida política do país. Um caso bem pertinho de nós foi o do Peru, quando um político foi filmado recebendo US$15 mil de Vladimiro Montesinos, eminência parda do então presidente Fujimori. A investigação descobriu um duto de corrupção que levou à prisão 120 pessoas e já foram recuperados US$170 milhões.

Ou seja, em qualquer país pode acontecer um caso como o mensalão. A diferença é que, no Brasil, pune-se menos. Estamos agora confirmando esta regra: a de ser o pais dos corruptos impunes.

Mas outros casos nos assombraram na semana. O ato do comandante do Exército, revelado por Elio Gaspari, que fez voltar um avião, é uma grotesca fotografia do passado. Ocorre hoje em dia por um motivo simples: a agência reguladora da aviação civil é militar. Pensa e age como militar. Isso é que precisa mudar há anos no Brasil.

O Exército nas favelas do Rio, como disse ontem neste espaço, põe o país num perigo extremo. O inimigo é o tráfico de drogas, mas o Exército tem que ter estratégia nesta ação. Do contrário, pode ser uma tragédia.

A invasão do centro de pesquisas da Aracruz pela Via Campesina não é novidade. Outras cenas como esta ocorreram no governo Lula. O ministro Miguel Rossetto fez uma declaração de praxe condenando mas, na próxima oportunidade, o presidente-candidato vai pôr de novo na cabeça o boné dos sem-terra. O presidente Lula dizia durante a campanha que seria a melhor pessoa para lidar com o Movimento dos Sem Terra. Foi a pior. Não entendeu uma lição básica: governos democráticos se deixam pressionar pelos movimentos sociais e os atendem na medida do possível. É da natureza da democracia. Mas governos democráticos zelam pelo cumprimento da lei e rechaçam movimentos que a afrontam deliberadamente. É a garantia da democracia.

O que todos estes casos da semana têm em comum é passar a idéia de um país que não preza seu futuro. É isso que assusta.