Título: BONS MODOS PARA AS MASSAS
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 12/03/2006, O Mundo, p. 43

Chineses têm aulas de etiqueta para impressionar estrangeiros nas Olimpíadas

PEQUIM. São 14h de uma sexta-feira em Pequim quando Lu-Chin Mischke começa a falar para 300 pessoas no auditório do Centro Comunitário do Distrito de Haidian, um dos maiores da cidade. Faz uma pergunta aos presentes, a maioria trabalhadores de baixa renda:

¿ Qual é o hábito mais desagradável dos moradores de Pequim?

Uma mulher levanta a mão:

¿ Cuspir por todo canto?

Bingo. Para surpresa de todos, Lu-Chin explica que não só a mulher na platéia, mas a maioria dos estrangeiros que passa pela China acha o mesmo. E pede, com toda a candura:

¿ Evitem cuspir na rua. É ruim para a saúde pública e uma grosseria. Se precisarem cuspir, usem banheiros. E se isso for impossível, por favor, não façam muito barulho.

Lu-Chin Mischke é presidente do Pride Institute, uma ONG dedicada a polir os modos da sociedade chinesa organizando palestras sobre etiqueta em empresas, centros comunitários, escolas e universidades pelo país.

A missão pode parecer bobagem, mas não é. Depois de anos sujeitos a planejamentos econômicos desastrados e vítimas da doutrina de um governo comunista que proibia as pessoas de plantarem flores por ser considerado ¿uma deformação burguesa¿, os chineses se distanciaram do que Lu-Chin chama de bom senso.

¿ Muitos pensam que uma sociedade comunista é uma sociedade na qual todos se preocupam com o todo em detrimento de seus desejos individuais ¿ diz ela. ¿ Nada mais ingênuo. A sociedade chinesa foi ensinada a sobreviver apenas e, neste estágio, desconhece o que significa etiqueta ou outras regras de convívio social. E isso inclui mesmo os novos-ricos, que no seu deslumbramento, confundem dinheiro com empáfia e desrespeito.

De fato, estrangeiros costumam se espantar com o contraste entre a opulência e a rapidez do desenvolvimento nos grandes centros e alguns costumes da população, como cuspir ruidosamente, desrespeitar filas, empurrar quem está na frente, falar aos gritos, não cuidar da higiene pessoal e limpar narizes e ouvidos em público.

O problema desta falta de consideração com o próximo e com o ambiente é tão grave em Pequim que a prefeitura decidiu lançar uma campanha para polir os hábitos da população com vistas às Olimpíadas em 2008. O novo código de conduta ¿ que será objeto de campanhas na mídia e nas escolas públicas ¿ inclui ¿não cuspir¿, ¿não tomar sopa fazendo barulho¿ e ¿não furar filas¿, entre outras.

A prefeitura nomeou Zhang Huigang como diretora do Escritório de Desenvolvimento Ético da cidade com a tarefa específica de melhorar o comportamento dos pequineses.

Em entrevistas à imprensa estrangeira, ela vai logo avisando que a tarefa não é exatamente algo a ser feito em dois ou três anos. ¿Construir estádios é fácil. Difícil mesmo é mudar hábitos que existem há centenas de anos¿, disse ela ao jornal ¿USA Today¿. ¿A riqueza econômica não foi acompanhada, na mesma velocidade, do refinamento social¿.

A mudança é também cultural. Para a maioria dos chineses, cuspir na rua, com o barulho mais alto possível, é uma maneira de se livrar de algo que o está incomodando. Simples assim, como manda há anos a tradicional medicina chinesa. Mas em 2003, no auge da epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), o governo iniciou uma campanha para pedir aos chineses que parassem de cuspir. Deu certo. No entanto, bastou a doença recuar em 2004 para os chineses voltarem aos velhos hábitos.

Liu-Chin sabe que, enquanto a riqueza não se espalhar entre o 1,3 bilhão de habitantes do país, haverá problemas de convivência.

¿ Sei que falar para 300 pessoas não muda um país como a China. Mas 300 ensinam outros 300 e por aí em diante. Assim se constrói um país.

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