Título: BUSH SE TORNA UM NEOCONSERVADOR SOLITÁRIO
Autor: Rupert Cornwell
Fonte: O Globo, 12/03/2006, O Mundo, p. 44

Reveses da guerra no Iraque põem em xeque manifesto que norteou estratégias da Casa Branca e isolam presidente

WASHINGTON. Foram necessários três anos, a perda de milhares de vidas iraquianas e americanas e US$200 bilhões ¿ tudo para conseguir o caos beirando a guerra civil. Mas finalmente os neoconservadores que venderam os EUA nessa guerra desastrosa estão começando a verbalizar três palavras: nós estávamos errados.

As reconsiderações têm se espalhado no espectro conservador, de William Buckley, editor da ¿The National Review¿, até a Andrew Sullivan, ex-editor da ¿New Republic¿.

Nem Buckley nem Sullivan admitem que a decisão de derrubar Saddam Hussein era intrinsecamente errada. Mas ¿o desafio requeria mais do que os recursos mobilizados¿, reconhece tristemente o primeiro.

¿O objetivo americano no Iraque fracassou.¿ Para Sullivan, a confusão atual é acima de tudo um atestado da autoconfiança e das presunções falsas dos americanos, nascidas da arrogância e da ingenuidade.

De todas as críticas, entretanto, a mais aprofundada é a de Francis Fukuyama, em seu quarto livro: ¿America at the crossroads¿ (¿América na encruzilhada¿).

O subtítulo é ¿Democracy, power and the neo-conservative legacy¿ (¿Democracia, poder e o legado neoconservador¿) ¿ e aquele legado, argumenta Fukuyama, está envenenado.

Exagero na ameaça pós-11/9 foi um dos erros

Não é simples tese, mas apostasia em grande escala. Fukuyama, afinal, foi o mais proeminente intelectual a assinar o Projeto para um Novo Século Americano (PNAC, na sigla em inglês), de 97, o manifesto de fundação do neoconservadorismo projetado por William Kristol, editor do ¿Weekly Standard¿.

O projeto pretendia cimentar o triunfo dos Estados Unidos na Guerra Fria ao aumentar gastos com defesa, desafiar regimes hostis e promover a liberdade e a democracia no mundo. A guerra no Iraque, justificada pela suposta ameaça das armas de destruição em massa de Saddam, foi o teste para essa teoria ¿ uma panacéia para toda doença do Oriente Médio. A estrada para Jerusalém, argumentavam os neocons, passava por Bagdá. E após o Iraque, por que não Síria, Irã ou qualquer outro no caminho de Washington?

Tudo isso, Fukuyama agora reconhece, foi um conceito trágico. Como leninistas antigos, os neoconservadores calculavam levar a História adiante com a mistura certa de poder e vontade.

Entretanto, ¿o leninismo foi uma tragédia em sua versão bolchevique, e retornou como uma farsa quando praticada pelos Estados Unidos¿.

Mas não foi Fukuyama que invocou em ¿The end of History and the last man¿ (¿O fim da História e o último homem¿) que o mundo inteiro estava numa trajetória para uma democracia liberal e de livre mercado? Sim.

Mas o livro, assinala ele, argumentava que o processo era gradual e deveria se desenvolver dentro do seu próprio ritmo.

Ardorosos defensores da guerra deixaram o governo

Mas os neocons não estavam apenas impacientes demais. Um segundo erro foi acreditar que os todos-poderosos EUA seriam confiados a exercer uma ¿hegemonia benevolente¿.

Um terceiro foi o exagero da ameaça pós-11/9 apresentada pelo radicalismo islâmico para justificar a doutrina de guerra preventiva.

Finalmente, havia a contradição entre a aversão dos neocons à intromissão do governo em casa e sua fé infantil na capacidade de impor engenharia social maciça no exterior.

Alguns, porém, estavam obstinados. No último ¿Weekly Standard¿, Kristol acusa Fukuyama de perder a coragem ¿ de esperar ¿recuar, agachar-se e deixar partes do mundo irem para o inferno, esperando que a situação não exploda em nossas mãos¿.

Na verdade, os estrategistas políticos de Bush que assinaram o PNAC nove anos atrás já se foram em sua maior parte.

Paul Wolfowitz, o mais persistente defensor da guerra, foi para o Banco Mundial. Richard Perle, líder do departamento dos falcões no American Enterprise Institute, sumiu de cena. Lewis Libby se demitiu do cargo de chefe de Gabinete do vice-presidente Dick Cheney.

Outro signatário foi Zalmay Khalilzad, o embaixador americano no Iraque que semana passada admitiu que a invasão abriu uma caixa de Pandora.

Os que sobraram ¿ basicamente Cheney e Donald Rumsfeld, secretário de Defesa ¿ não são tão neoconservadores quanto ¿uniteralistas Hobbesianos¿, preocupados em proteger e avançar os interesses nacionais num mundo violento e sem lei.

É nos lábios de George W. Bush que o neoconservadorismo mais óbvio sobrevive ¿ no compromisso de espalhar a liberdade e a democracia que ele apregoa quase diariamente.

Mas mesmo a extravagante oratória não pode obscurecer a ironia da aventura americana no Iraque.

A aplicação da doutrina construída sobre o suposto ilimitado poder americano foi bem-sucedida apenas em mostrar a limitação desse poder.