Título: CUBA E EUA, UM JOGO QUE JÁ DURA 47 ANOS
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 12/03/2006, Esportes, p. 47

Torneio que pretende ampliar as fronteiras do beisebol traz à tona o embate político entre castristas e americanos

Começa hoje a segunda fase de uma bizarria chamada World Baseball Classic (WBC). Trata-se de uma iniciativa da Liga Americana de Beisebol, a poderosa Major League Baseball, para tentar expandir internacionalmente um dos esportes considerados mais chatos, impenetráveis e pouco telegênicos do mundo. A meta da Liga é ampliar as fronteiras do esporte para além dos Estados Unidos, Cuba e Japão. Empreitada difícil.

Alguém já disse que assistir a um jogo de beisebol equivale a olhar a grama crescer ¿ não tem tempo para terminar. Uma partida de segunda divisão disputada nos Estados Unidos em 1981, por exemplo, começou às oito horas de uma noite de domingo, prosseguiu até as 4h07m da madrugada, teve de ser interrompida e só terminou dois meses mais tarde, 18 minutos após a retomada. Não é por acaso que o beisebol precisou ser incluído sete vezes como esporte olímpico de exibição ou demonstração antes de adquirir status pleno, nos Jogos Olímpicos de Barcelona de 1988.

Interesse de Bush e Castro bem além do esportivo

Tudo nesta primeira ¿Copa do Mundo¿ de beisebol é bizarro ¿ a geografia, os participantes, as regras alteradas para viabilizar a cobertura de tevê. Ainda assim, George Bush e Fidel Castro acompanham o seu desenrolar com interesse bem além do esporte. Desde que Fidel tomou o poder em Cuba 47 anos atrás, o beisebol faz parte do embate político que confronta o seu regime com todos os ocupantes da Casa Branca.

De um modo geral, e excetuando-se Cuba, no universo do beisebol as afiliações nacionais são construções bastante artificiais. Enquanto no futebol a identidade primeira de todo jogador de seleção está na bandeira do país que chama de pátria, no beisebol o que conta é o clube, o time, a Liga. Nada mais biônico do que ver uma estrela como Mike Piazza, o catcher de 16 milhões de dólares do Mets de Nova York, nascido nos Estados Unidos, integrar a seleção da Itália para efeitos do World Baseball Classic. De todo modo, foi assim que o torneio conseguiu arregimentar 16 seleções e montou quatro grupos.

Enquanto os jogos iniciais da fase classificatória foram disputados em Tóquio, as demais partidas desta Copa se realizam em estádios do território americano ou em cidades sob sua jurisdição ¿ como San Juan, capital do Estado-associado de Porto Rico.

Foi ali que Cuba estreou com duas vitórias, como time favorito da chave C e seleção mais aguardada e vigiada desta Copa. E é em torno da presença de jogadores cubanos em terras americanas que se concentra o nó político-ideológico-esportivo-policialesco do torneio.

Até poucos meses atrás, o governo de George W. Bush se mantinha irredutível no veto à entrada da delegação de Cuba em suas fronteiras. Mas quando vários países participantes reagiram, ameaçando fazer forfait, e a Federação Internacional de Beisebol comunicou que não reconheceria o torneio se Cuba ficasse de fora, a Casa Branca cedeu. Fez bem, pois a voz tonitruante do canadense Dick Pound, influente e temido membro do Comitê Olímpico Internacional, já se fazia ouvir: caso os Estados Unidos não revertessem o veto, declarou Pound, qualquer candidatura futura de cidade americana para sediar Jogos de Inverno ou Verão ficaria comprometida.

Racha ideológico-familiar presente no campo esportivo

A Casa Branca cedeu, mas impôs uma condição: a Liga Americana, principal patrocinadora do evento, não poderia repassar nenhum centavo aos cubanos por sua participação. A resposta veio de pronto:

¿ Garantimos ao Departamento de Estado que só queremos jogar beisebol e não ganhar dinheiro. Por isso doaríamos tudo às vitimas do furacão Katrina ¿ anunciou o chefe da delegação de Havana, Higino Vélez.

A notícia do recuo americano incendiou a comunidade anticastrista aquartelada nos Estados Unidos. E enfureceu Lincoln Diaz-Balart, o deputado republicano pela Flórida que há décadas esculpe sua biografia para suceder a Fidel Castro. Diaz-Balart tem 51 anos. Fidel vai completar 80 em agosto próximo. Diaz-Balart é figura de proa dos emigrados cubanos da Flórida. Vem a ser, também, sobrinho do ¿Comandante¿ ¿ a irmã caçula de seu pai casou-se com Fidel em 1948 e é mãe de Fidelito, o filho mais velho do líder cubano.

O casal se divorciou antes da vitória castrista de 1959, consolidando um racha ideológico-familiar iniciado pelo cunhado. De fato, já em 1955, o pai de Diaz-Balar ¿ de quem o ¿Comandante¿ fora colega de colégio ¿ havia lançado um alerta à nação. Fidel tinha sido preso em tentativa frustrada de derrubar o regime da época mas acabou sendo solto.

¿ Sua libertação ainda vai trazer muitos dias de luto, dor, derramamento de sangue e miséria para Cuba ¿ discursou, na época, o cunhado.

Comunidade anticastrista torce por deserções

Quando a revolução de Fidel vingou, o cunhado se encontrava em Paris com a família. Foi direto para Miami, sem arriscar escala em Havana. E é da Flórida que seus dois filhos dão continuidade à causa anti-castrista.

Mario, o irmão caçula de Lincoln Diaz-Balar, também integra o Congresso americano desde 2002.

Inconformado com o recuo do governo Bush no caso da Copa de beisebol, resta a Lincoln Diaz-Balar torcer pelo que o próprio Fidel Castro já chamou de ¿nosso maior adversário ¿ as deserções¿. A pior delas ocorreu justamente em Porto Rico, 13 anos atrás: 39 atletas e treinadores cubanos pularam do navio que os trazia para participar dos Jogos Centro-Americanos e Caribenhos. Em 1996, dez dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Atlanta, Rolando Arroyo, o arremessador e estrela maior da seleção cubana de beisebol da época, escapuliu da concentração. Os companheiros de time que conheciam seu plano lhe pediram para jogar pelo menos as partidas iniciais, e com isso aumentar as chances de Cuba se classificar. Arroyo não os atendeu e seu nome é um dos mais malditos na ilha. Ainda assim Cuba levou a medalha de ouro em Atlanta.

Na Olimpíada passada, em Atenas, também. Em parte essa hegemonia se explica porque a formidável esquadra cubana de beisebol, sustentada pelo Estado, tem podido reinar sozinha há quase cinco décadas. Da mesma forma que as estrelas do basquete milionário da NBA até recentemente não se misturavam com medalhistas de ouro olímpico, também os astros do beisebol profissional jamais se dispuseram a interromper férias para disputar Copas do Mundo ou Jogos Olímpicos.

Daí a novidade desse World Baseball Classic.

Não deixa de ser espantoso que o beisebol cubano continue produzindo tantos talentos em meio a tantos revezes. O que já foi uma máquina inigualável de excelência, murchou. As instalações esportivas do país estão em ruínas. Nomes míticos da história do beisebol ¿ El Duque, Contreras, Arocha, Arrojo ¿ desertaram da ilha deixando órfãos os torcedores cubanos.

Ainda assim, entra ano sai ano, cerca de 140 mil jovens participam do beisebol organizado, enquanto outros dois milhões jogam peladas nas ruas e terrenos baldios do país. É um celeiro que parece não se esgotar.

¿ Vamos ajudar a quem queira desertar ¿ informa abertamente Miguel Angel Martinez, presidente da seção porto-riquenha da Fundação Nacional Cubano-Americana, um dos grupos de exilados mais atuantes.

Jogadores cubanos têm ofertas milionárias

No hotel de San Juan que hospeda as quatro seleções do Grupo C (Panamá, Cuba, Holanda e Porto Rico), os cubanos são mantidos em uma área mais afastada, por onde também circulam, abertamente, agentes do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos.

¿ Vamos representar nosso país com dignidade e retornaremos ao nosso país com dignidade ¿ assegura o rebatedor Osmany Urrutia. ¿ Jamais trairemos nosso comandante.

O duro é resistir a ofertas de contratos de 32 milhões de dólares, como a que fez desertar o melhor arremessador da seleção cubana, José Contreras, durante torneio realizado no México quatro anos atrás. Nestas ocasiões, o assédio dos agentes esportivos e olheiros americanos é tão intenso e persistente quanto o dos grupos de exilados.

A resposta silenciosa dos cubanos

Só que eles trabalham em silêncio, enquanto os anticastristas fazem o máximo de barulho possível. Na noite de sexta-feira, a delegação cubana vazou o rumor de que poderia se retirar do torneio se a atuação dos que chama de ¿provocadores¿ não for contida. Na véspera, um gigantesco cartaz com os dizeres ¿Afuera Fidel¿ fora erguido no estádio em que Cuba derrotava a Holanda, diretamente na linha de foco das câmeras da ESPN que transmitiam a partida para os 11 milhões de cubanos.

E se a seleção de Cuba conseguir chegar à final, marcada para o próximo domingo em San Diego, na Califórnia, alguma chance de Fidel Castro estar presente na decisão?, quis saber um jornalista que entrevistava o porta-voz da delegação cubana.

¿ O senhor acha que Bush o convidaria? ¿ respondeu Pedro Cabrera.