Título: PERIGO À VISTA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 18/03/2006, O PAÍS, p. 4

Uma crise entre os poderes Legislativo e Judiciário está latente há algum tempo, e parece ter chegado nos últimos dias a seu cúmulo, com a interferência do segundo sobre o primeiro, não apenas nas investigações de CPIs como até mesmo nas reuniões de partidos políticos. O senador Cristovam Buarque, pré-candidato à Presidência pelo PDT, foi quem tocou na ferida, chamando a atenção da tribuna do Senado para o risco que corremos com a influência cada vez maior que o Executivo está tendo sobre o Judiciário, numa versão tupiniquim do fenômeno moderno do superpresidencialismo que, através dos mais diversos artifícios, impõe a vontade do presidente da República aos demais poderes, seja na Rússia de Putin ou na Venezuela de Chávez.

Depois de toda celeuma provocada pela sucessão de hábeas-corpus concedidos pelo STF, permitindo que pessoas convocadas pela CPI pudessem silenciar para não se auto-incriminarem, e que culminou com a atitude cínica e debochada do marqueteiro Duda Mendonça, que simplesmente se recusou a responder até mesmo o nome da mulher e dos filhos, vive agora o mundo político às voltas com liminares que impedem simplesmente o prosseguimento de depoimentos em CPIs, e até mesmo as prévias eleitorais de um partido político. A interpretação dos advogados de Duda de que o hábeas-corpus concedido a seu cliente lhe permitia escarnecer dos membros da CPI dos Correios, com a recusa radical de responder a toda e qualquer pergunta, é evidentemente uma demasia que deforma o sentido original das liminares que, embora corretas do ponto de vista da proteção dos direitos individuais, acabaram se desvirtuando pela facilidade com que foram concedidas pelo Supremo nesses últimos meses. Não é à toa que popularmente ficaram conhecidas como ¿licença para mentir¿. Também a liminar parcial concedida pelo ministro do STF Cezar Peluso ao mandado de segurança do senador petista Tião Viana é errada, na opinião de muitos especialistas, porque se baseia numa suposição. Ele diz que o depoimento do caseiro em nada serviria para esclarecer o uso de dinheiro de casas de jogo na campanha de Lula, apesar de o caseiro, em entrevistas anteriores, ter reconhecido empresários angolanos ligados a bingos como freqüentadores da mansão de Brasília onde se reunia a turma de Ribeirão Preto. Ele também aceitou a tese de que o depoimento poderia atingir a honra pessoal do ministro Palocci, quando bastaria que proibisse referências a questões sexuais no depoimento. Não bastasse essa liberalidade toda da Justiça, os juízes não estão tendo o menor cuidado com as aparências. Assim como à mulher de César era exigido que não apenas fosse virtuosa, mas que parecesse virtuosa, aos juízes, especialmente aos dos tribunais superiores, também se exige que tomem cuidado com que aparentam ser. Nos últimos acontecimentos, os presidentes do STF, ministro Nelson Jobim, e do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, não tiveram esse cuidado. Apontado como possível companheiro de chapa de Lula à reeleição pelo PMDB, Jobim não recusou em nenhum momento essa possibilidade, dando oportunidade a que cada decisão sua estimulasse uma série de dúvidas e acusações. Eu mesmo escrevi aqui defendendo algumas de suas decisões polêmicas, mas admito que ele não teve a preocupação de não dar margem a desconfianças, considerando-se acima de qualquer suspeita. Pior: a certa altura, confirmou que se aposentaria do Supremo dez anos antes do prazo legal, e que sairia no fim deste mês. Como os magistrados têm até o final de abril para se filiar a partidos políticos e se candidatar a cargos eletivos, o anúncio da saída do ministro parecia a confirmação de que ele estava interessado na vice-presidência. Mais ainda: se não há nenhum interesse político em sua saída do STF, por que então deixou para se aposentar no fim de março, e não no fim de abril ? Se marcasse sua saída para o dia 1º de Maio, calaria de vez os críticos que pediam o seu imediato afastamento do cargo, por suspeição. Mas o ministro Jobim, alegando que não poderia ficar à mercê da crítica da imprensa ou de adversários políticos, anunciou que sairá do STF no fim deste mês e se filiará ao PMDB de Santa Maria, sua cidade natal, embora garanta que não será candidato a nada. Por que então não deixa para se filiar em maio, já que a filiação será apenas um ato de liberdade pessoal, sem conseqüências políticas imediatas? A desconfiança lógica é que ele pretende estar apto a aceitar um ¿apelo cívico¿ do PMDB caso a oportunidade apareça. Também o ministro Edson Vidigal, que concedeu a liminar impedindo a realização de prévias do PMDB, deixa no ar a desconfiança de que sua decisão tem razões políticas: ele, que já foi deputado federal, é um político reconhecidamente ligado a José Sarney, de cujo grupo faz parte, e declarou que deixará o STJ para se candidatar ao governo do Maranhão. Com o apoio de Sarney ou do PT de Lula, tanto faz. Como Sarney, juntamente com o senador Renan Calheiros, é o principal líder do grupo do PMDB que quer impedir o partido de ter um candidato próprio para poder apoiar a reeleição de Lula, e como esse é o sonho de consumo de Lula, o presidente do STJ deveria ter se considerado sem condições de julgar o mandado de segurança do PMDB. Sempre atrás de movimentos cerceadores da Justiça estão o governo Lula, e parcela do PMDB que quer forçar um apoio à reeleição do Presidente da República. É preciso um bocado de boa-fé na Humanidade para se acreditar que tudo não passa de uma terrível coincidência.