Título: O PODER DO PMDB
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 19/03/2006, O País, p. 4

Mesmo que as prévias do PMDB sejam realizadas hoje, não é certo que o candidato escolhido venha a ser oficializado na convenção de junho. Para que as prévias aconteçam, será preciso não apenas ganhar a guerra de liminares que promete acontecer até a undécima hora, mas também ganhar a guerra física que se prenuncia. Os governistas de hoje não são os de ontem, mas os métodos não mudaram.

A diferença é que os capangas que os governistas mobilizaram em 1998, para humilhar o ex-presidente Itamar Franco na convenção do partido que decidiu apoiar a reeleição do então presidente Fernando Henrique, podem encontrar hoje capangas do outro lado, pois o ex-governador Garotinho sabe, tão bem quanto os caciques do Centro-Oeste do PMDB, utilizar o lumpesinato para essas arruaças, que já estão se tornando comuns nas convenções do PMDB.

Ontem como hoje, o que está em jogo é qual grupo controlará o próximo governo, já que está se tornando monotonamente repetitivo o fato de que o PMDB, entra administração, sai administração, continua sendo uma força política sem a qual ninguém governa. O presidente Lula cometeu seu primeiro grande erro político ao rejeitar o acordo que o então coordenador de seu governo, o chefe da Casa Civil José Dirceu, fez com o PMDB na composição do primeiro Ministério. Ao vetar a entrada no governo do PMDB, o presidente Lula ficou à mercê do baixo clero desorganizado, e acabou enredado nesse esquema do mensalão, que ele diz que não existiu, mas foi a principal razão para inchar sua base política, tão mais frágil quanto mais dependia de nebulosas transações com o PTB de Roberto Jefferson, o PL de Valdemar Costa Neto ou o PP de Pedro Corrêa.

Todos hoje fora da política, juntamente com o coordenador do esquema, o ex-deputado José Dirceu, pelas maracutaias que promoveram para apoiar um governo que há meses agoniza em praça pública, e só se sustenta em pé pela capacidade que tem o presidente Lula de se comunicar com as massas desorganizadas e convencê-las de que nada tem a ver com os desmandos que literalmente o cercam.

É verdade que essa capacidade de convencimento é apoiada por um lado pela Bolsa Família e outros programas assistencialistas, e de outro pelos agrados que a política econômica faz aos rentistas financeiros e aos usuários da Bolsa-Miami, financiada pelo dólar barato que leva a classe média a voltar a viajar e a consumir importados mais em conta.

Mas o objetivo do governo a longo prazo é vencer as eleições, e para isso vale tudo, principalmente amarrar o PMDB a seu projeto de segundo governo. O Lula populista que surge nesta campanha é muito diferente daquele que se elegeu em 2002, e muito mais diferente ainda daquele líder operário que assustava a classe média desde a primeira tentativa de chegar à Presidência, em 1989.

Do grupo inicial que assumiu o governo com Lula em 2003, o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, é o único que está em atividade sem ter sido atingido pela tsunami de acusações que varreu o primeiro escalão do governo. Dos poucos que sobreviveram, ferimentos graves impedem que atuem com mais desembaraço.

O secretário particular Gilberto Carvalho, foi envolvido na investigação da morte do ex-prefeito Celso Daniel; Luiz Gushiken, envolvido nas denúncias sobre fundos de pensão, está isolado na Secretaria de Assuntos Estratégicos, e o homem-forte do governo, ministro da Fazenda Antonio Palocci, foi atingido inapelavelmente pelo relacionamento assustadoramente próximo com os lobistas baratos da turma de Ribeirão Preto.

O PT, partido político que historicamente era a âncora do projeto de Lula, deverá sair das urnas de outubro reduzido pela metade, e o presidente cada vez se mantém mais distanciado dele. Sua importância política será reduzidíssima num eventual segundo mandato de Lula, e é previsível que venham a ter mais discordâncias do que pontos de convergência no governo.

O papel do PMDB, que crescerá em qualquer circunstância, será decisivo num segundo mandato de Lula. O partido disputa o governo, com chances de vitória, em 17 estados, deverá manter a maior bancada do Senado ¿ há quem preveja que pode até ter a maioria do plenário ¿ e fazer a maior bancada da Câmara, com a queda do PT.

Por isso o grupo governista, capitaneado pelos senadores José Sarney e Renan Calheiros, prevendo que o PMDB governará de fato nesse segundo mandato, quer formalizar uma aliança política para chegar ao poder novamente através de Lula.

Os que querem a candidatura própria também enxergam as potencialidades dessa formidável máquina política que, se não estivesse tão fatiada entre diversas lideranças, poderia ser o centro da vida política brasileira. Garotinho e Rigotto, cada um a sua maneira, acham que no comando dessa máquina, e com cerca de 25 minutos de tempo de televisão, teriam condições de vencer Lula.

O que está em jogo hoje é mais um passo nesse projeto de poder. O escolhido, se realmente as prévias se realizarem, terá percorrido um caminho até há pouco inimaginado para um candidato próprio do PMDB. A caminhada é longa até a convenção de junho, e muitos outros recursos, legais ou nem tanto, serão tentados para barrar o pretendente a condutor dessa máquina de fazer votos que é o PMDB. Muitos já tentaram e foram ¿cristianizados¿ pelo caminho.

Mas, aparentemente, nunca houve tanta reação interna do partido às manobras das lideranças. A mobilização nacional para as prévias pode ter despertado nas bases partidárias um sentimento de poder que, colocado a serviço de um candidato, pode torná-lo o fator surpresa da próxima eleição.

Quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo, de maneira clandestina, pode. Quebrar o sigilo bancário do Paulo Okamotto, amigo do presidente, a pedido da CPI, não pode? Tratar de assuntos pessoais do ministro Antonio Palocci não pode. Mexer na vida privada do caseiro Francenildo pode?