Título: OS BRASILEIROS QUE NÃO EXISTEM
Autor: MARIE-PIERRE POIRIER
Fonte: O Globo, 19/03/2006, Opiniao, p. 7

OBrasil é mesmo um país incrível. Neste ano, cerca de 100 milhões de pessoas vão às urnas, em uma nação com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. Não creio que, em qualquer outro lugar do planeta, a votação fosse apurada em tempo tão exíguo quanto será no Brasil, graças à informatização do sistema eleitoral brasileiro. Neste mesmo país, a cada ano, 500 mil crianças nascem e não são registradas civilmente em seu primeiro ano de vida.

A falta do registro civil priva a criança de um de seus direitos fundamentais ¿ o direito a ter identidade ¿ e a mantém afastada de benefícios sociais, como o programa Bolsa Família, podendo dificultar seu acesso à escola. Essas crianças não existem oficialmente, portanto, não são consideradas nos planejamentos dos governos para ações em saúde, educação ou assistência social.

O Brasil já mostrou, em várias frentes, ser capaz de enormes avanços para assegurar os direitos de suas crianças. Desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, o país praticamente universalizou o acesso das crianças ao Ensino Fundamental e reduziu em mais de 40% a taxa de mortalidade infantil.

A aprovação da Lei 9.534, que tornou gratuito o registro civil para todas as crianças, independente da condição socioeconômica de sua família, foi uma conquista importante. O atual governo assumiu como uma de suas prioridades a erradicação do sub-registro civil de crianças e adultos. Entre 1997 e 2004, houve uma redução na taxa do sub-registro nacional de 24,8% para 16,4%. Mas ainda existem disparidades regionais, que tornam a situação mais desafiadora em determinados estados. No Amazonas, por exemplo, 41 de cada 100 crianças nascidas no Estado não são registradas no primeiro ano de vida, enquanto no Distrito Federal esse índice é de 0,6%.

As razões para o sub-registro são muitas. Algumas vezes, as famílias desconhecem o direito ao registro gratuito de seus filhos ou não têm informação sobre a importância da certidão de nascimento. Nas áreas rurais, os cartórios ficam distante das maternidades ou da residência dessas famílias. Há ainda denúncias de que alguns cartórios cobram ou dificultam o registro gratuito de nascimento das crianças.

Para algumas populações, o registro civil é ainda mais complicado de ser obtido, como para as crianças indígenas. As famílias dessas crianças devem primeiro obter o registro administrativo junto à Funai, antes de ir ao cartório registrá-las civilmente. Se o deslocamento da aldeia até o cartório da cidade já é difícil para a família, imaginem ter que sair duas vezes para fazer o mesmo registro!

Algumas ações mostram que é possível superar os desafios e garantir o registro das crianças. Em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, uma ação da Funai em parceria com a comunidade indígena possibilitou o acesso quase universal ao registro civil entre os índios Guarani-Kaiowás. Na pequena cidade de Santa Quitéria, no Maranhão, após uma intensa mobilização desencadeada pelo Unicef, uma parceria entre o Ministério Público, o Poder Judiciário e a comunidade garantiu que todas as crianças e adultos ainda não registrados alcançassem esse direito.

Outra solução eficiente foi a instalação de postos avançados de registro civil em centenas de maternidades brasileiras, especialmente naquelas reconhecidas pela Iniciativa Hospital Amigo da Criança. Assim, logo após o parto, os pais podem registrar com mais facilidade as suas crianças recém-nascidas.

Para contribuir no avanço do alcance da meta do país de erradicar o sub-registro civil, o Unicef produziu um vídeo sobre a importância da certidão de nascimento e da garantia do registro gratuito para meninos e meninas.

Ainda há muito a ser feito, mas o mais importante é o país manter seu compromisso, buscando formas criativas e eficientes de assegurar a cada uma de suas crianças o direito a um nome.

MARIE-PIERRE POIRIER é representante do Unicef no Bras