Título: FALTA JUSTIÇA ONDE SOBRA VIOLÊNCIA
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 19/03/2006, Rio, p. 20

Varas criminais de áreas com alto índice de homicídios têm cada vez menos processos

Varas criminais situadas em algumas das regiões mais violentas do Rio de Janeiro estão encolhendo. Estatísticas do Tribunal de Justiça revelam que, em 29 delas, o número de novos processos instaurados em 2005 foi inferior ao do ano anterior. Há casos, como o da 3ª Vara Criminal de Volta Redonda, em que o movimento processual caiu tanto que já ameaça a sobrevivência da unidade.

Ao transformar cidades acossadas pela insegurança em áreas estatisticamente tranqüilas, pela baixa quantidade de processos penais, o relatório do TJ exibe em números o drama de um sistema que só consegue punir quando há flagrante. A maioria dos casos não resulta em ações penais porque a Polícia Civil não consegue concluir os inquéritos e o Ministério Público fica sem oferecer a denúncia.

Um dos cenários da maior chacina já registrada no estado, na qual foram assassinadas a tiros 29 pessoas, entre adultos e crianças, há um ano, Queimados está na lista das varas de baixa produtividade. De acordo com o relatório, o número de novos processos caiu de 16 casos por mês, em 2004, para 14 no ano passado. Isto para um município que, em apenas um mês de 2005 (dezembro), registrou 335 ocorrências policiais, das quais nove homicídios, 92 lesões corporais e dois estupros.

¿ Como a população está descrente, ela já não procura a polícia quando há crime. Além disso, as investigações são feitas de forma precária. O Ministério Público fica vendido. Não adiante denunciar, se o réu acabará absolvido ¿ lamenta o juiz Marco José Mattos Couto, titular da Vara Criminal de Queimados.

Nem chacina vira processo

A própria chacina, ocorrida em 31 de março do ano passado, ainda não virou processo. Os réus só estão presos por envolvimento em outros crimes. Com um acervo de 3.500 inquéritos inconclusos, a 55ª DP só conta com quatro de seus 27 policiais empenhados em investigações (os demais se ocupam de outras obrigações, como carceragem e plantão).

¿ A equipe é pequena e há escassez de recursos, mas estamos conseguindo movimentar alguns inquéritos, inclusive os da chacina. Começamos a procurar as testemunhas, dando a elas segurança para nos ajudar ¿ diz o delegado Marcelo Ambrósio, titular da unidade há sete meses.

O Judiciário estadual conta com 86 varas criminais ¿ não entraram na conta as varas únicas, que acumulam processos penais e cíveis, e as varas especiais, para casos menos graves. A lista das 29 com queda de novos processos tem varas no Rio de Janeiro (capital e Jacarepaguá), São Gonçalo, Duque de Caxias, Queimados, Barra Mansa, Resende, Volta Redonda, Macaé, Itaguaí, Nova Friburgo e Cabo Frio.

Em Volta Redonda, município que em dezembro do ano passado teve 664 ocorrências policiais, as três varas criminais registraram queda de novos processos. Na 1ª Vara, a redução foi de 14 ações mensais para 12 no ano passado; na 2ª , a queda foi de 11 para dez; na 3ª , onde a situação é mais crítica, o número mensal caiu pouco (10,96 processos em 2004 para 10,67 no ano passado), mas a comparação com os casos julgados mostra que ela pode até fechar.

Enquanto recebia dez casos novos por mês, o juiz da 3ª Vara, Celso Silva Filho, conseguia julgar uma média de 25 processos mensais (15 a mais). Como o estoque da vara é pequeno (693), a manter este ritmo ele vai zerar o acervo em quatro anos.

¿ Há mesmo uma discrepância muito grande porque a onda de violência é grande. A delegacia de polícia de Volta Redonda tem um número grande de inquéritos, em torno de 10 mil. Mas, como há falta de pessoal, a polícia só cuida dos casos de flagrante. Os acusados são levados pela PM. Os demais casos vão ficando para trás ¿ diz o juiz.

Celso Filho lembrou ainda que, com os juizados especiais, os casos de menor importância, como briga entre vizinhos e uso de drogas, já não aparecem nas estatísticas das varas criminais tradicionais, fazendo também a produção cair. Mas ele reconhece que, mesmo assim, para uma cidade que virou rota do tráfico de drogas e cujo principal empregador demitiu depois da privatização cerca de 3 mil trabalhadores, o movimento processual está muito aquém da realidade.

Também localizado no Vale do Paraíba fluminense, Resende enfrenta uma das situações mais críticas. Sua única vara criminal sofreu uma redução de 44 para 27 novos casos mensais em um ano.

São Gonçalo é outro caso de encolhimento. Das suas cinco varas criminais, três (3ª , 4ª e 5ª ) sofreram queda de novos casos em um ano. Duas delas registraram a média mensal de apenas 19 processos instaurados, para um dos municípios mais violentos do estado, com 757 ocorrências registradas só em dezembro do ano passado, das quais 11 homicídios, seis tentativas de homicídio, quatro estupros e 113 casos de lesão corporal dolosa.

O secretário estadual de Direitos Humanos, coronel Jorge da Silva, não se impressiona com a queda da produção judiciária. Para ele, além de refletir as dificuldades clássicas enfrentadas na fase de investigação, o fenômeno expõe uma tendência demonstrada pela sociedade brasileira, que só cobra a investigação de crimes cujas vítimas eram pessoas de posse ou de alguma notoriedade:

¿ Temos a cultura de que só é importante aquilo que acontece com pessoas tidas como importantes. Se verificarmos a taxa de elucidação de homicídios no Brasil, ela é muito baixa. Se for verificar a taxa de elucidação de pessoas tidas como importantes, 100% de esclarecimento. Os homicídios só são apurados em função de quem foi assassinado.

Para o secretário de Direitos Humanos, a estatística do Poder Judiciário reflete a visão de sociedade ¿em geral¿ que só cobra da polícia quando o caso é rumoroso:

¿ Claro que é problema da policia, mas é legitimado pela sociedade. O que a sociedade exige da polícia? Apuração? Não. Não exige o empenho da investigação dos homicídios em crimes quando as vítimas são pobres, da periferia e negros. O que exige é policiamento na sua porta para evitar a presença dos indesejáveis. Ai, fica perfeitamente claro por que as varas criminais acabam perdendo a importância.