Título: O milagre da multiplicação
Autor: Carla Rocha e Fábio Vasconcelos
Fonte: O Globo, 19/03/2006, Rio, p. 32

Governo divulga lista de 10 mil obras, mas inclui trabalhos não executados, malfeitos ou que não foram concluídos

Em vez de ser um documentário da realidade, a propaganda das 10 mil obras do governo Rosinha tem cenas de filme de ficção. A partir da lista que deu origem à campanha publicitária, feita pelo próprio estado, repórteres do GLOBO percorreram, durante duas semanas, 10 dos 92 municípios. Foi o bastante para descobrir obras que não saíram do papel, foram malfeitas, estão paralisadas ou já necessitam de reparos. Ou sequer são obras, mas sim serviços de reforma ou manutenção. O valor gasto pelo governo na propaganda ¿ veiculada na TV, rádio, jornais e outdoors ¿ ainda não foi calculado pelo estado, segundo o secretário de Comunicação, Ricardo Bruno.

O levantamento do jornal com base na lista revela que áreas essenciais não foram priorizadas e que a velha prática política de buscar votos com asfalto ainda prevalece: 50% das obras são de pavimentação. Com 26% delas, Nova Iguaçu foi o maior beneficiado por esse tipo de serviço. O governo declara ter asfaltado numa só tacada 645 ruas, sem identificá-las. Uma parte pelo menos nunca saiu do papel.

O convênio firmado entre o estado e o município da Baixada Fluminense em 2001 foi paralisado. Em vez de 77 bairros, apenas 44 foram asfaltados. Com isso, há muitas ruas que continuam a ser de terra batida, como a Martins Júnior, no bairro Valverde. A Rua Sorocaba e a Avenida Oswaldo Cruz, em Botafogo, também no município, ainda têm cobertura de paralelepípedos colocados há mais de 30 anos. Ao todo, de acordo com a Prefeitura de Nova Iguaçu, 284 ruas não foram pavimentadas como era previsto.

¿ Perco quase 20 minutos para fazer o trajeto de bicicleta até a casa da minha avó, que é pertinho da minha ¿ reclama Felipe Lima de Melo, flagrado fazendo mais uma vez o ¿rali¿ pela esburacada Martins Júnior.

Educação ficou com apenas 4% das obras

Com apenas 4% do bolo, a educação não assistiu, exceto na TV, à ¿construção de centenas de novas salas de aula¿. Não há isso na lista oficial. A não ser um único item que informa sobre três novas salas de aula na Escola Estadual Pedro Soares, na Ilha Grande. Também são citadas apenas as construções de duas escolas, uma em Miracema e outra num loteamento em Iguaba Grande. Mais um furo: a obra de Iguaba Grande nunca foi terminada. E mesmo as reformas de escola só beneficiaram 25% da rede pública estadual, que tem 1.670 unidades.

¿ É uma pena. Nossa escola seria linda, mas está pela metade. Não saiu mais dinheiro e o telhado nem foi colocado ¿ lamentou Elide Canellas, secretária de Governo de Iguaba.

O secretário estadual de Educação, Cláudio Mendonça, não quis comentar o conteúdo da lista e enviou ao jornal uma outra, no fim da tarde de sexta-feira, enumerando 291 salas de aula e três novas escolas construídas (a nova lista não pôde ser checada).

¿ Não sei por que essas salas não estão na lista. Quanto à de Iguaba não é problema meu, é obra da Secretaria de Habitação porque fica num loteamento ¿ disse o secretário.

Já a relação de obras na área de saúde, que mereceu 0,6% dos itens da lista, inclui ¿reparos¿ no pavilhão Miguel Couto do Hospital São Sebastião do Caju ¿ referência no tratamento de doenças infecto-contagiosas ¿ que na verdade está abandonado. Há pelo menos três anos o segundo andar desse pavilhão foi desativado. No lugar, resta a imagem desoladora de um corredor fantasma onde ficavam os antigos quartos que recebiam pacientes de tuberculose internados. Apenas 61 obras foram feitas em unidades de saúde em seis anos e meio, o que dá, em média, dez por ano.

O cruzamento de dados não deixa dúvidas de que grande parte das obras é de reformas ou serviços de conservação e manutenção, como limpeza de valões e trocas de tubulação da Cedae, que deveriam ser rotina. Até a reforma do quadro de força e a limpeza dos dutos do ar-condicionado da sede do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) ajudaram a engordar o balanço oficial do governo. Outra curiosidade foi classificar como obra ¿gestão do trabalho do preso¿.

As obras, segundo o governo, abrangem seis anos e meio porque todas as realizações do governo anterior, de Anthony Garotinho, foram incorporadas. A mesma lógica não contemplou a adversária política do casal, Bendita da Silva (PT) , com quem Garotinho dividiu sua gestão. Os nove meses de Benedita ficaram de fora.

Em saneamento básico, foram enumeradas obras não executadas em Maricá e Duque de Caxias. Tão importante quanto o saneamento no cálculo do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o programa de moradia popular enfrenta situações precárias como pôde ser verificado nos conjuntos da Cehab em Sepetiba II e na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, um dos primeiros a serem construídos.

Garota-propaganda de Garotinho à época da inauguração do conjunto do Lixão, Ieda Silva de Amorim, de 36 anos, diz que se arrependeu de ter dito na TV que estava maravilhada com a oportunidade de morar num lugar com água encanada e esgoto tratado.

¿ Antes a gente não precisava nem de bomba para puxar água. Ela subia numa velocidade incrível. Agora, a água sumiu e o esgoto está aí na rua para quem quiser ver ¿ disse Ieda, que há um ano não vê água correr na bica e tem brigado em vão junto com outros moradores para acabar com vazamentos de esgoto.

Sem obras, moradores fazem vaquinha para ter água

Na semana passada, os moradores do Lixão fizeram uma vaquinha de R$20 por casa para dar início à instalação de uma rede externa que vai levar água Cedae que chega na Avenida Presidente Kennedy para dentro do conjunto. A oficialização do ¿gato¿ foi a única saída para a falta de água crônica.

Por último, a segurança pública, apesar dos altos índices de violência do estado, também perdeu para a pavimentação: ficou somente com 2,6% do canteiro de obras de Rosinha.